Wilson Valle
Há tempos não visito, com a escrita, o meu bairro, suas poucas ruas e seus personagens que marcaram minha vida. E olhem que sempre me pego viajando por aqueles caminhos com as melhores recordações da minha existência.
Ainda outro dia, me lembrei de um personagem marcante de minha infância, o senhor Wilson Valle. Certamente que sua vida daria páginas e páginas de uma prosa cativante. E é dessa pessoa que me ocupo hoje munido do que a memória me traz com a limpidez das coisas boas que gravamos.
Wilson Valle é nome de rua, lá no meu bairro. Minto, não chega a ser uma rua. A travessa Wilson Valle une a Rua Fausto Machado a ela mesma, e as pessoas se valem da travessa para cortar caminho.
Wilson certamente se riria da homenagem, que não era homem de se preocupar com agradecimentos. Homem pardo, robusto, de estatura mediana, usou das mãos grandes e fortes para serviços de carpintaria, que os espalhou aos quatro cantos do bairro, talvez da cidade.
Era um sujeito alegre, divertido e de um deboche que eu – na infância e na adolescência – achava muito engraçado. Me lembro de vê-lo em ação na arte da carpintaria, com agilidade e perfeição. Pelo que sei, costumava sair sem dar o preço. Deixava a obra pronta e a amizade selada. Depois se estudava o preço. Ele era assim.
Meu pai tinha por ele grande estima. Eu gostava dos amigos de meu pai. E Vivica era um deles. Esqueci-me de dizer: Wilson Valle era tratado por Vivica.
Vivica – tenho certeza – era meu amigo, mas caçoava de mim e, certa vez, me deu muito medo. Os fundos da casa dele era paralelo aos fundos de minha casa, em terrenos situados em diferentes níveis. Eu morava um pouco mais alto e, certa feita, andei empurrando com os pés umas terras para o terreiro do Vivica. Fui infeliz, pois ele viu a peripécia do garoto de uns seis anos, no máximo, e de lá – alto e bom som – me ameaçou, sério, com uns tapas. Minha mãe, intransigente na proteção dos filhos, ouviu e gritou pra ser ouvida:
– Vem agora, venha... Um revólver te espera.
Seguiu-se um silêncio.
Vivica jamais me estapearia. Minha mãe jamais dispararia. Fizeram ataque verbal puro. Só isso. A arma ficava muito bem guardada e apenas meu pai, de vez em quando, treinava em uma tábua. Treinava só pra não enferrujar, dizia ele.
Dia seguinte, eu estava no portão de casa. Vivica, despido de qualquer raiva, passa risonho e pergunta pra mim: – Cadê o revólver dela? – Eu ri e ele seguiu caminho.
Quando fui ficando adolescente, a voz foi engrossando, claro. Mas tem aquela fase intermediária, em que não é grossa e nem fina... Ele passava, conversava e saía-se com essa: – Mas que voz de falsete, menino! – E seguia a vida, que tinha muito o que fazer.
Esse homem, de quem lhes falo e agora avanço um pouco no tempo, já no final da história dele fez um pequeno prédio praticamente sozinho, e eu o acompanhei de longe, com admiração. Vi aquelas mãos fortes deixarem o fruto de seu trabalho para os filhos, meus amigos de infância, a Ana, o José Luís, a Helena e o Sebastião, este último se foi muito cedo e machucou muito o coração forte do Vivica e da dona Jandira, sua esposa – uma das costureiras de nosso bairro.
Vivica era também um homem muito religioso. Todos os anos, nos festejos de São Sebastião, ele recebia os vizinhos para um terço rezado e cantado, sob o comando da dona Glória. Eu o via sério, devoto e seguindo todos os ritos. Era bonito ver aquele homem forte, que parecia nem precisar de Deus, se entregar em orações. Eu ia vivendo, eu ia aprendendo. É bom lembrar...
Fui professor primário muito tempo. Ajudei crianças nos deveres e ganhei cedo um dinheirinho. Costumava pegar o ônibus e ter a companhia do Vivica. Antes dos tempos da roleta, eu dava um jeito de entregar ao trocador o dinheiro de duas passagens. Discretamente, olhava para o Vivica e dizia que estava pago. Vivica aceitava o mimo, com um leve sorriso, sem maiores espalhafatos. Era minha forma de agradecer a quem já tinha atendido meu pai tantas vezes e não cobrava caro. Meu pai tinha até que insistir para pagar.
Certa feita, fazíamos um quartinho em casa. Contratamos um pedreiro. Sabem quem chegou? Vivica, no golpe de vista, acusou a tortura da parede e o rapaz – contrafeito – derrubou tudo e fez de novo... Perdemos um pouco de dinheiro, mas compensou...
Travessa Wilson Valle, merecida homenagem. A travessa é pequena, e este relato já se vai longo. Vivica talvez dissesse: – Mas não haveria uma rua? – Certo que não; o bairro é pequeno, como disse, embora a maior de suas vias se chame rua Goiás. Uma pena! Certamente que haverá tantas pessoas que poderiam nomeá-la, e Vivica é uma delas. Mas o tamanho da travessa não importa. Importa o homem por trás do nome.