SOCIOLOGIA DA MORTE: DOS "GIGAHUMANOS " QUE NÃO MORREM NUNCA
O assim chamado pela imprensa "GIGAfuneral" da Rainha Elisabeth II ( afinal estamos ainda mais superlativos na era "high tech" ) me suscitou a lembrança dum forte sentimento de quando eu era criança, algo que me impressionava muito e sobre o qual já escrevi algumas vezes.
Falo da "sociologia " da morte.
Minhas tias maternas nasceram e praticamente viveram a vida toda numa cidadezinha do Noroeste de São Paulo, na época com uma população média de cinco mil habitantes, aonde eu chegava da capital para passar todas as minhas férias escolares.
Diferente de hoje, quando muitas vezes morrer é um evento com pompas, comes e bebes e com direito ao "menu" de músicas no" SPOTIFY", naqueles local e época, morrer não era apenas um "acontecimento" triste, era algo desesperador.
Começava pelas badaladas do sino da Igreja (longe de ser o belo londrino de "Westminster") e que ali funcionava como uma rádio da cidade. O sino falava e eu o ouvia com ouvidos de criança assustada.
Naquela dobrada tão seca e sonora, algo muito importante prontamente seria anunciado: ou alegre ou triste.
Eu, logo sentia o peito acelerar...como sinto até hoje.
Quando se tratava de óbitos, lembro que havia um carro desses com alto falantes que, ao passar pelas ruazinhas sob a
“Marcha Fúnebre de Chopin", nos trazia uma voz de mídia que anunciava à população toda a logística do funeral. A música hoje faz parte da minha memória afetiva.
Ali, todos eram uma grande família, em coração uníssono na felicidade e na adversidade.
Eu , uma criança extremamente inquieta, curiosa e observadora, que não parava de perguntar sobre tudo, quando ia às solenidades já havia ouvido o terço da minha mãe, ou das minhas tias, a me orientar para eu ficasse quieta.
"Fica quietinha, bem perto da gente e não pergunta nada, ok ?".
Mas quando o assunto era morte, o que me impressionava mesmo era as edificações do cemitério da cidade.
Era impossível não perceber, ainda que bem criança e pela suntuosidade de alguns jazigos, que ali nem todos haviam morrido.
Quando a procissão do féretro chegava no cemitério, depois de visitar o local dos meus avós, eu logo fugia ao tal "cruzeiro', lugar que teologicamente se rezava para todos dali .
Eu achava bem mais pratico porque minha lista de reza era enorme. Não queria deixar ninguém de lado.
Ali chegava depois de passar por vários túmulos se desfazendo na terra, com flores de plásticos em vasos tombados, mortas, sujas e emboloradas , totalmente "negligenciadas pelo cuidado aos que se foram". Era o meu pensamento.
Ao chegar sob aquela cruz enorme que tocava o céu e me fazia tão pequena, lembro que eu focava aquelas várias imagens desovadas de santos quebrados, como se num museu de fé processada e desacreditada sob as intempéries dum solo frio.
Tempo passado que, com alguma exceção, ali mostrava que carcomia quase tudo. Mas não todos.
Aquilo me entristecia, de fato soava abandono...dos que, pensava eu com meu botões infantis, não pareciam "viver" para sempre.
Então, me ajoelhava, rezava um Pai Nosso e uma Ave Maria e ato contínuo acendia uma vela branca porque, como havia aprendido, tentava brilhar uma luz de paz para todos que estavam ali, meio que aos pedaços pela esfacelada terra sob o céu da Terra de todos.
O vento, que sempre soprava forte em campo aberto, insistia em apagar a minha chama.
Eu não desistia nunca , sempre procurava o melhor lugar, até conseguir montar uma "casinha com pedras" que fixasse a luz da minha velinha reacendida várias vezes.
Era como tentar um sopro de vida para os que -como ali se encenava- sempre morreram na vida e na morte.
Hoje sei que era como insistir em fornecer certa resiliência à luz.
Quando ia embora, sempre olhava para trás para me certificar se o vento não havia apagado a chama da minha dádiva de fé.
Numa daquelas vezes, passei com minha tia por um jazigo enorme, feito duma arquitetura que lembrava algo de estilo neoclássico, talvez pouco já mais eclético, de extremo bom gosto, impecável, onde a fartura de cortinas, mármores, objetos de arte, móveis, tapetes e comidas chamava minha atenção pela discrepância com os de cimento esfarelados sobre a terra batida do entorno.
Ali parecia se ouvir as trombetas de chegada dos anjos do paraíso...
Naqueles mausoléus a gente tinha até vontade de entrar para se sentir melhor.
Se sentar ali...e quem sabe tomar um cafezinho daquela boa terra cafeeira, recém coado no coador de pano, a saber notícias do lado de lá?
Então, lembro que, talvez contasse com mais ou menos sete anos, perguntei pela primeira vez: "tia, por que aqui é tão diferente? Quem foi enterrado aqui?"
E a resposta que nunca se calaria:" aqui foi enterrado alguém muito importante, só pessoas muito importantes!"
Ao olhar para as fotografias de pessoas falecidas e desconhecidas por mim, mas que pareciam gente como todo mundo, minha réplica do mágico pensamento infantil foi imediata: "Mas tia, se era alguém tão importante, por que morreu?"
Não houve resposta.
Minha resposta apenas me chegaria algo mais tarde, numa "GIGA" solenidade dum funeral histórico, um simbolismo de "vida e morte", algo sobre mortais e imortais da Terra. Enfim, um funeral de gente importante...para definitivamente se ter o grande e inesquecível aprendizado.
Algo que me chegaria também por ora, quando ao escrever me pego a me fazer a mesma pergunta
à qual eu mesma aqui me respondo.
Sim, aquele cemitério da cidadezinha da minha infância era uma perfeita metáfora da vida, tanto em vida quanto em morte.
Uma resposta inquietante, fustigante e muda que apenas nos ressoa silenciosamente aos ouvidos do tempo vivido, visceralmente interpretado e devidamente aprendido.
Sim...ali era uma escola da vida sobre a "sociologia da morte".
Aprendi.
Embora a morte física seja a única certeza há "GIGAHUMANOS" construídos duma resina externa que não fenece nunca.