ESSA CRÔNICA É SOBRE EU E VOCÊ.
Nuvens carregadas roubam o azul celeste, o tom pesado se arrasta de uma extremidade a outra deixando a impressão de estar anoitecendo em pleno vigor do dia. O silêncio se faz presente, folga do trabalho, recolho-me na insignificância do meu ser. Minha mente fica em profundas divagações, então começo a refletir: Quando estou em dias, "normais", de trabalho e correria, me invadem sensações estranhas e profundas de distanciamento, recolhimento da alma e anulação do ser que se nega ao outro. Por fora, sorrisos, vozes, olhares, apertos de mãos; por dentro, no entanto, existe um quarto escuro com uma criança quieta e assustada. Essa terrível contradição me devora inteiro, machuca, pois estando exatamente de folga, "no silêncio", esse afastamento do núcleo social me expõe para uma multidão de quimeras habitando no calabouço dessa mente. Por isso a necessidade de me trancar, como já mencionei. Nesse quarto escuro sou essa criança acuada, os meus fantasmas estão do lado de fora batendo na porta.
No quase absoluto silêncio de casa, reflito ainda sobre a minha vida, e de outros tantos como eu, que trabalham diretamente com o público, penso nas muitas situações que nos fazem sentir, assim, tão pequenos.
Aliás, você, sim... Você me vê do outro lado do balcão, percebe o cansaço na minha fisionomia. Poucos balconistas para uma multidão de fregueses. Chega a sua vez de ser atendido, eu, com toda a gentileza e cortesia te atendo, te sirvo, escuto atento a cada palavra. Entre uma reclamação e outra da sua parte, desprende-se da minha face um tímido sorriso e um muito obrigado, enquanto você, na maioria das vezes sai sem nem agradecer.
Aliás, você, sim... Você me vê estender a bandeja de trufas diante do vidro do carro, me vê com um sorriso no rosto. Você, de cara amarrada e olhar de fuzilamento, abre vidro pela metade. Eu, com toda a ternura te ofereço deliciosas trufas de vários sabores, o sinal continua fechado. O meu olhar te implorando para comprar apenas uma. A sua negativa me ofende, pois eu bem percebo que estás a mentir. " Não tenho nada agora". Você diz uma mentira com o olhar de uma verdade. A tua consciência, pesada, mostra na tela do pensamento todas as cédulas escondidas em sua carteira, mas você não cede." Deus abençoe moço". Eu respondo educadamente, olhando você bater em retirada na abertura do sinal.
O contrário também acontece.
Você me vê do outro lado do balcão, sim, eu mesmo, lembra-se de todas as vezes que eu te atendi, das suas implicâncias. A minha fisionomia muda, o sorriso vai embora. Você se aproxima de mim, tentando ser educado, não quer repetir o que fez da última vez. O seu bom dia não é correspondido por mim, nenhuma expectativa é correspondida, aliás. Então você retorna chateado, com raiva, convencido de que o contrário seria melhor, promete para si mesmo que fará diferente da próxima vez, que dará o devido troco. Eu, ao vê-lo partir tão furioso, arrependo-me do trato áspero, prometo a mim mesmo que da próxima vez serei mais educado.
Você me vê dentro do carro, sim, eu mesmo, lembro-me da última vez que você me ofereceu trufas e das minhas palavras mentirosas, da minha falta de educação, da minha negativa no olhar de mentira, da demora em abrir o vidro desconfiando. Então decidi comprar trufas, mas você finge que não me viu, mesmo ao sinal de meu aceno, você passa direto, atende o carro atrás, fingindo não me escutar. Eu prometo entre palavrões que da próxima vez serei ainda mais bruto quanto é possível ser, saindo cantando pneu ao abrir o sinal. Você, já na calçada, observando minha presa, a raiva, fica arrependido por não ter me atendido, você promete a si mesmo que da próxima vez será mais educado, e como pedido de desculpas, pensa até em me dar uma trufa a mais.
E o dia segue o curso, entre céu cinza pesado e resquícios de azul desbotado. No quase absoluto silêncio de casa reflito: Essa crônica é sobre eu e você, no quanto poderíamos ser melhores quando somos piores.
É sempre assim, quando nós iremos aprender?