Ultimamente ando bem assim: se lhe fizer bem, apesar das prescrições contrárias, seja feliz e siga em paz. Quero dizer, coma feliz e arrote mais!

 

Minha vizinha, uma senhora de 82 anos, é um bom exemplo pra dar uma relaxada na corda e parar de segurar o arreio. A mulher que já viveu 8 décadas, até o último mês, era a pessoa mais feliz da cidade.

 

Portadora de diabetes tipo 2, comia seu docinho de leite sem nenhum remorso. Depois de ter sido dilacerada numa cirurgia coronária grave de alto risco, bebia todo dia a sua cachacinha e nunca deixou o torresmo de lado.

 

A mulher ia ao supermercado. Passava noites em claro em festas de família. Virava o salão dançando as músicas de época e atuais. Viajava de carro, por 8 horas seguidas, pra São Paulo, ao menos duas vezes ao mês. Ela era fora da curva. Mas nunca a vi reclamando de nada. Filho adoecia: força no aprendizado. Neto na estripulia: Eu também já fui assim. Então a vizinha era imbatível, inclusive na cozinha. E tinha só uma faxineira de 15 em 15 dias. A mulher não tinha limite.

 

Da última vez que as filhas vieram lhe fazer uma visita, exigiram um check-up. Não que nunca o fizera. Mas nunca mostrou os resultados pra ninguém. Ela dizia, com propriedade: "quem procura, acha. E quem acha, padece. E apodrece." E não é que a danada ditava uma profecia?

 

O angiologista, um médico obeso que vivia exigindo dieta e exercícios dos pacientes, mas nunca foi visto numa academia, revelou um problema grave, comprovado via exame: obstrução de 99% das artérias dos membros esquerdo e direito. A mulher fortaleza nunca sentiu nada. Mas o médico disse que a vida dela estava por um fio. As filhas, que acordaram depois de 40 anos em sono profundo (só reconheceram a vulnerabilidade agora), a intimaram para o tratamento. E foi assim que D. Iva adoeceu.

 

Na primeira semana do remédio, dores de cabeça. Na segunda, pressão arterial 11 X 22. Na terceira, tremores de tida espécie. Na quarta uma convulsão focal. Em dois meses, a mulher maravilha que cuidava da própria vida, foi abduzida para uma cidade há 800 km de distância, sob cuidados especiais.

 

De lá pra cá, não que esteja negligenciando a saúde do corpo, mas D. Iva tinha razão: "quem cuida da própria vida não tem tempo pra enxergar dieta alheia."

 

Agora, vejo meu pai com o saleiro na mão e o ameaço com um sorriso:

 

- Isso mata! Mas viver sem sal também já é uma espécie de morte... Menos é mais!

 

Vejo Adriano se lambuzando no açúcar, com esteatose hepática e triglicérides nas alturas:

 

- Açúcar é um veneno! Mas já que vai morrer que seja com uma pitada de vontade... Ao menos não ficou no prejuízo.

 

Vejo as pirralhas nadando de braçada nas balas:

 

- Olha, olha! Não vamos tornar todos os dias,  o lixo. Um dia de cada vez. Um dia refri, outro chocs e por aí vai. Marca na geladeira da vó Eva.

 

E se é "pela felicidade do povo e felicidade geral de uma nação gourmet" diga ao povo que... Lasquem-se!

 

E por falar nisso, destruam essa crônica. Não cai bem plantar a ideia de autoextermínio alimentar. Não seria um crime passível de pena de detenção?

 

Mas, sinceramente, é tanta privação que já me identifico com a privada. Com água, mas sem descarga.

Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 15/09/2022
Reeditado em 16/09/2022
Código do texto: T7606521
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