O Cãocioneiro - Deus e diabo no mar do Sertão (capítulo 2)
O Sertão é lindo. Aqui tudo é liberdade.
É um tantão de nada a perder de vista, até onde a vista alcança.
O Sertão parece o mar, que nunca acaba. Tem fim, mas não se chega.
O mar eu só conheço de leitura. E leitura, só conheço de ouvir falar.
Padre Tobias sempre que vinha a nossa casa, lia pra nós a Santa Palavra. Ele lia de um povo que andou pelo deserto. Que era igual ao Sertão. Só que lá, tinha um mar. O mar, é um mundão de água. Aqui não tem mar, porque não tem água. Só aquela tirada do poço.
Não tem água porque carece de chuva, dizia a égua. Eu nem sabia o que era chuva, pois nunca tinha visto uma. Mas ela me falou quão bonito era chuva.
O céu passava de azul para cinza escuro, e às vezes quase preto. E água caia de lá de cima, molhando tudo. Trazendo vida, alegria para o homem e para os animais. Para mim, parecia milagre. Lenda. Coisa pra se contar antes de dormir, dentro do galinheiro. Sonhava poder ver chuva também. E mar.
O mar devia ser igual ao Sertão, só que de água. O Sertão é lindo. Aqui tudo é liberdade.
Eu passava o dia deitado, esparramado na terra, de baixo da sombra da casa. Vez em quando batia a orelha pra mosca sair. Seô Chico ficava cavando a terra com a enxada. De lá tirava mandioca. Uma mandioca pequena, seca. Mas que eles comiam com força. As galinhas comiam o que se dava. Fome a gente tinha de sobra. Eu aprendi comer pasta de mandioca. Não conseguia comer carne, pois era outro bicho que matavam pra comer. Podia ser até carne da minha mãezinha. A égua e a cabra comiam de tudo um pouco. Mas viviam mordendo mato. O mato ralo. Comi um pouco uma vez. E outra. E tantas. Fome, a gente tinha de sobra.
Siá Maria pegava água no poço, e nos dava. Sempre pouco. Depois cozinhava as mandiocas. Amassava. Fazia mingau, assava um bolo seco. Mas eu só comia a pasta. Do bolo nunca nem provei.
Um dia, a cabra me disse que iria embora. Fugiria. Sertão afora. Estava cansada de ficar amarrada e comer miséria. Beber miséria.
Mas fugir pra onde? Aqui a gente era livre. O Sertão era uma liberdade sem fim.
Ela me disse que o homem era mau, que nos prendia, marcava, tangia, ferrava, engordava e matava.
Padre Tobias nos lia sobre Satanás. Que era o diabo. Ele dizia que o diabo não vinha senão roubar e matar.
Siá Maria tinha roubado meus irmãos. Siá Maria tinha matado minha mãe. Siá Maria era o diabo?
O homem é o diabo dos bichos.
Os dias foram passando. Uma manhã, deu um vento diferente. Tinha um cheiro. Cheiro de coisa nova. Descobri que eu sabia cheiro. Cada um tinha um cheiro. Seô Chico cheirava Chico, Siá Maria cheirava Maria. As galinhas cheiravam, a égua cheirava, a cabra cheirava.
Aquele cheiro diferente. Era cheiro bonito. Cheirava vida. Era cheiro de chuva.
Pela primeira vez, vi o que era chover. Aquilo era divino. O padre estava certo, Deus havia de ter.
O padre falava de Deus e do diabo. Do diabo eu sabia. Diabo era o mal. Era ver meus irmãos serem levados. Era ver minha mãe morrer. Siá Maria era o diabo?
O diabo até dá chuva faz maldade.
A chuva foi o dia todo. Siá Maria juntou água em vasilha. Juntou água no latão. Juntava onde podia. Depois que a chuva acabou, os vizinhos de perto vieram. O padre ia dar missa.
Seô Chico sorria. Chamou as galinhas, jogou milho. Eu me alegrei. Mas então, o diabo. Seô Chico pegou três franguinhos. E passou a faca na garganta. Siá Maria pegou e jogou numa panela com água fervendo e tirou as penas. Eu voltei pro galinheiro. Meus olhos choviam.
Eles foram para uma quermessa que ia comemorar a chuva. Eu fiquei ali triste. Percebi que eu tinha nome. Mas as galinhas não. Siá Maria me chamava pelo nome, mas elas não tinham nome. Pensei que se moravam tudo com a gente, o certo era por nome. É triste não ter nome. Morrer sem nome, sem motivo. Se podia comer mandioca, pra que comer as pobre das galinhas?
Aquela noite, quase não dormi. Sonhava com a chuva. Pra ela trazer vida. Mas ela trouxe foi morte. Chuva trazia vida, mas trazia morte. Chuva era Deus e diabo.
A Cabra não amanheceu. Tinha fugido. Seô Chico ficou furioso. Siá Maria nem falava. Ela ficou em casa e Seô Chico saiu procurar. Me levou junto. Eu ia olhando o cheiro. Onde ela tinha passado. Depois aprendi que era faro. Eu era bom de faro. Andamos o dia todo, mas nada. Eu ia e vinha, de um lado ao outro, mas ela não aparecia. Voltamos pra casa. No outro dia, cheirei de novo. Nada.
Seô Chico falou que eu nem pra rastrear servia. Mas eu sabia que podia.
No terceiro dia, peguei um cheiro forte. Só que tinha um cheiro azedo. Era a Cabra, mas cheirava diferente. Fui olhando aquele cheiro, e ia ficando mais azedo. Cheiro forte.
Achamos. Ela estava caída na terra. Língua de fora. Cheia de mosca. Morta. Aquilo foi demais pra mim. Vomitei.
Lembrei do padre. Do que ele lia sobre o Sertão da Santa Palavra. Lá naquele Sertão, tinha mar. Mas o nome do mar era Morto.
No Sertão, até mar é morto.
O Sertão é feio. Aqui somos tudo escravo. Escravo da seca. Escravo da fome. Escravo da chuva. Escravo do homem.
O homem era o diabo. O nosso diabo.
O Sertão é tão lindo, mas não sabe disso.