ELE SÓ QUERIA BRINCAR

Em decorrência da correria em que vivemos, muitas vezes deixamos de exercer a capacidade de observar o mundo que nos circunda. Muito embora os talentosos escritores, cineastas e os dramaturgos cuidam de apresentarem ao mundo fatos que passam despercebidos em nosso avexado cotidiano. O imortal Jorge Amado, em Capitães da areia, revelou ao mundo como vivem as crianças e adolescentes abandonados e marginalizados dos centros urbanos, especificamente em Salvador. Nas telas essa dura realidade também foi capturada pela diretora Sandra Kogut no filme Campo Grande, no qual reproduz a complexidade com que se estabelecem certas relações sociais no Brasil ao abordar a difícil situação de duas crianças abandonadas. Observe, caro leitor, que há uma considerável distância de tempo entre essas duas produções, mas pelo enredo, essa distância não é percebida. Tal qual as narrativas aqui apresentadas e a tantas outras inúmeras produções artísticas que se hibridizam com a triste realidade de muitas crianças e jovens por essa Brasil a fora, fui surpreendido com uma situação afim às aqui mencionadas. Falo em “surpreendido” porque não é corriqueiro, em pleno dia útil, sobrar tempo em nosso tão corrido dia para conversar com estranhos, se é que podemos chamar um semelhante nosso de estranho. De longe observei uma criança em baixo do parquinho, meio triste, um tanto maltrapilho, mas tentando interagir com as demais crianças que estavam brincando no parque e, cuidadosamente, acompanhadas de seus pais. Era uma praça bonita, grande, arborizada, com diversos parquinhos para crianças, embora nem todas fossem bem vindas. Ao perceberem a tentativa de aproximação, os cuidadosos pais logo retiravam seus filhos e iam embora, deixando sozinha aquela criança que só queria brincar com as demais. Decidi me aproximar e logo percebi que o pequeno era bom de conversa. Já foi me pedindo um dinheirinho para comprar um lanche, pois estava com muita fome, ao que atendi prontamente. Observei que guardada em baixo de um banco, estava uma bolsa já meio velha, mas parecia guardar material escolar. Apontei para minha descoberta e perguntei de quem e o que era. Explicou que havia saído de casa às 06 horas para escola, mas ao chegar a turma havia sido liberada pois a professora fora diagnosticada com covid-19. Sem ter o que comer em casa e sem o apoio da merenda escolar, ele resolveu aguardar ali mesmo, no parque, na tentativa de conseguir algum dinheiro ou lanches dos transeuntes ou das crianças que fossem brincar. O nosso encontro ocorreu às 13 horas. Até aquele momento ele ainda não tinha comido nada, como também não tinha arrecado qualquer dinheiro. Apesar da fome e da incerteza de sacia-la, meu mais novo parceiro de resenha aparentava nada perturbá-lo. Certamente, ter dado atenção àquela criança não era só o que ela esperava, mas posso afirmar que já não era a mesma criança de anteriormente. Comprei alguns salgados em um quiosque ali pertinho e continuamos o conversar. Era apenas uma criança vítima da sociedade, como já havia cantado Gabriel o Pensador quando escreveu “[...] Mas nove meses depois foi encontrado, com fome e com frio, abandonado num terreno baldio [...] Quem foi a pátria que me pariu? [...]” Com apenas 7 anos, não conhecia o pai ou mesmo nem tinha um pai. Quando perguntei sobre a mãe, parou por alguns segundos, olhou tristemente para mim e quase sem conseguir falar, segredou, em voz baixa, que estava presa por ter deixado ele e outros dois irmãozinhos trancados em casa e ter ido curtir a noitada. O problema foi que a casa, ou a casinha, como ele mesmo disse, pegou fogo e por pouco o céu não recebeu mais três anjinhos. Com a mãe presa, as 3 crianças vivem com uma tia que não parece ser muito diferente da realidade que tinham antes, pelo que pareceu. O papo estava legal, mas já era hora de partir, voltar para nossa bolha, nosso mundinho. Desejei-lhe boa sorte, dei conselho para continuar seus estudos e ser um bom garoto, como se alguém soubesse o que é ser um bom garoto. Ele também pegou sua bolsa e partiu cidade a dentro em busca de algumas moedas. Havia me contado também que desejava muito comprar uma bicicleta, por isso que depois da escola ia todo dia para o centro pedi dinheiro aos transeuntes para, quem sabe, um dia realizar o seu sonho, um dos muitos, acredito. Uma vez que os sonhos já começam a povoar a mente do nosso pequeno, esperamos e torcemos para que a sua pátria mãe gentil não consiga realizar o aborto tardiamente.