Rosa e Roxo
Como se fossem imagens de baixa resolução e mal editadas, a lembrança daquela cena inédita me vem à memória: Eu, com a cabeça no seu peito (era fofo tal travesseiro por causa da abundância de pelos). Não me lembro se recebi um cafuné, assim como não lembro dele me dando a mão, um abraço ou conselho…
Na verdade, lembro de um conselho após uma coça que levei. Ele me disse para não repetir o que eu tinha feito de errado, senão ele perderia tempo e dinheiro. Fiquei apavorado quando ele achou uns desenhos pornográficos que eu tinha feito, mas dessa vez eu não apanhei: "Quem te ensinou isso?", ele me perguntou, "Você que não foi!", era a resposta que ele merecia, nunca me ensinou nada, até meu pênis eu aprendi a lavar sozinho…
Mas também lembro das excursões para Aparecida do Norte, Porto das Caixas, Itaipú, Conceição de Jacareí etc. Lembro de uma vez no parque de diversões, dos banhos de chuva. Lembro dele preparando o jantar para mim e meu irmão, de assistir Segunda Sem Lei na TV, de ir buscar minha mãe na estação de trem…
Lembro do tapa que levei na cara quando pus na boca o cigarro que ele tinha me mandado buscar na cozinha: " Eu posso fumar, meu filho não!". Ele disse. Lembro da noite que acordamos com o barulho da discussão, da minha mãe encurralada na parede, do pé dele sangrando depois que ela (para não apanhar novamente) reagiu…
Lembro dos amigos dele da obra (igualmente alcoólatras) ,que, talvez por não terem onde ir no final de semana, dormiram lá em casa. Lembro de um que cuspia no chão de vermelhão que minha mãe encerava com tanta dedicação. Lembro de irmos a um bar, da namorada bêbada que ele arranjou depois que saiu de casa, lembro dela pegando minha Coca-Cola sem meu consentimento, para misturar com cachaça e fazer um "samba"...
Mas também lembro de outra namorada dele que morava em Magé, passei um final de semana na casa dela. Lembro que ela era prendada e parecia gostar muito dele. Não lembro do seu rosto, mas lembro que havia bondade em seus olhos, lembro da sua doçura, do seu afeto e zelo por mim. Lembro do melhor (talvez o único) presente que ele me deu, um radinho de pilha preto…
Lembro que ele queria que eu ou meu irmão tivesse o nome parecido com o dele, mas não lembro do seu nome na nossa certidão de nascimento. Lembro da barba, da voz rouca, dos cabelos castanhos, das piadas sem graça (só ele ria delas). Lembro que ele gostava de ler as histórias em quadrinhos de faroeste do Tex Willer, do cantor Manhoso, dos Trapalhões etc. Lembro de, apesar dos pesares, não julgá-lo…
Ele esqueceu ou não teve tempo de me pedir perdão, mas eu o perdoei. A pedido da minha mãe, contra a minha vontade, fui ao sepultamento dele naquele domingo cinza. Eu só sentia incômodo por estar ali, e constrangido por não chorar junto aos demais. Lembro do seu corpo imóvel, da camisa surrada do Flamengo. O vermelho e preto estava roxo e rosa, sua pele rosa, estava roxa, não havia rosas.