VOCÉ TEM FOME DE QUÊ?
VOCÊ TEM FOME DE QUÊ?
Nelson Marzullo Tangerini
Em sua crônica “Bons dias!”, publicada no jornal Gazeta de Notícias, de 19.5.1888, Machado de Assis deixa claro por que o ex-escravizado Pancrário, ainda que feliz, por sua alforria, momentos antes da Abolição, resolve permanecer na propriedade de seu antigo senhor, agora patrão.
Ali, embora trabalhe – de forma análoga à escravidão -, recebendo alguns trocados e alguns piparotes, Pancrário pode, ao menos, ter garantidos o abrigo e alimentação. É o retrato de como foi feita a “libertação” daqueles que jamais tiveram acesso aos estudos e jamais foram indenizados pelos maus tratos, pela desagregação familiar e pelo trabalho escravo que fizeram.
O “Bruxo do Cosme Velho” não revela as condições de trabalho do ex-escravizado, mas podemos adivinhar que o humilhado rapaz pode ter trabalhado, ali, sem carteira assinada. Qui sait? Afinal, como escreveu o autor, Pancrário valia menos que uma galinha, que não vai embora do roçado porque ali está o milho que matará a sua fome – e que o deixará alimentado e forte para prosseguir em seu trabalho não remunerado. Na canção “Morro velho”, Milton Nascimento cria uma história semelhante a de Pancrário, embora retrate as vidas de dois meninos: um preto e um branco. Enfim, o retrato de um país que prossegue, há séculos, com o mesmo pensamento.
Quantas pessoas, no Brasil, trabalham em troca de comida? Quantas pessoas trabalham sem carteira assinada? Quantas pessoas trabalham unicamente para pagar contas, se alimentar e continuar vivendo? A ordem, nesta oração, é necessariamente esta, enquanto a família do presidente compra um sem número de imóveis com dinheiro vivo e declara arrogantemente que a fome no Brasil é invenção da mídia esquerdista.
A gente não deveria querer só comida. A gente deveria querer, também, diversão e arte. E uma saída para qualquer parte.
Angelina Jolie declarou que “O mundo precisa de atitudes, não de opiniões. Opinião nenhuma mata fome ou cura doença”. E talvez a opinião deste cronista que vos escreve, que toma o seu café da manhã e “almoça e janta”, como escreveu o poeta maranhense Ferreira Gullar, não valha nada.
Em “Crianças chatas”, Clarice Lispector, descreve, em poucas linhas, crônica ligeira, o drama longo que se espalha pelos países pobres, de terceiro mundo – como o Brasil -, onde grassa a miséria, o desabrigo e a fome. A mãe, com seu filho faminto, acaba por se resignar, enquanto a autora alimenta a revolta por ver a cena que pode ser real. E é real. Principalmente, neste momento de corrupção desenfreada, arrogância, grosseria e falta de sensibilidade.
Poeta modernista, o pernambucano Manuel Bandeira, no poema “O bicho”, fala de um ser humano que, desesperadamente faminto, vive como um cão ou um rato, buscando comida no lixo. Enquanto o concretista Ferreira Gullar, em seu “Poema brasileiro”, escrito em 1962, usa a proposital repetição – ou redundância - para reforçar que “No Piauí, de cada 100 crianças que nascem, 78 morrem antes de completar 8 anos de idade”.
Talvez tenhamos que repetir, também, que, enquanto escrevo esta crônica, milhares de pessoas, no Brasil, catam comida no lixo, como aquele “Bicho” que abandona a metáfora para ser comparação. Ou mais: aqueles que se alimentam de osso de bois e fragmentos de galinhas: pescoços, asas e pés.
Plagiemos Drummond, amigos artistas – compositores, pintores, poetas e escritores! Saiam de seus escritórios luxuosos, de seus palácios de cristal, e vão à rua para ver o submundo de suas cidades, sempre visto à distância pelos políticos – e pelos artistas. A fome rende votos, dá inspiração, por exemplo, aos que se dobram diante da folha de papel em branco ou do computador. “Os miseráveis” estão lá, na via pública, a vossa espera, necessitados de um solução real – não de uma “solução final”.