Os Sertões, leituras sem leitura

 

          Meu amigo e admirado professor Milton Marques, especial confrade na Academia Paraibana de Letras, revistando meus livros, nas estantes da minha biblioteca, deparou-se com  Os Sertões (Campanha de Canudos), do fenomenal Euclides da Cunha, que considero o épico do nosso mundo literário. Retirou o livro às suas mãos, detalhadamente, depois de olhá-lo, observar a capa, com a expressiva ilustração de E. Koetz: No horizonte, o Sol morno, entardecendo, ladeado por dois urubus, sobre os montes, e, em maior grandeza, deitado de bruços no chão, um combalido jagunço, apoiado na mão esquerda, descamisado, estirando um rosário no pescoço, na mão direita, segurando uma espingarda de um tiro só; e lançando aos céus um olhar esperançoso.
          Milton me redescobriu uma obra que, depois de seguidas leituras, andava, há anos, longe das minhas vistas. E logo na primeira página sem número, o título, minha assinatura quase igual à de hoje, o preço “500”, talvez quinhentos cruzeiros, já que o padrão monetário brasileiro, de 1942 a 1967, período da compra desse livro, tinha o símbolo Cr$. Significativa outra anotação, então escrita por mim: 1963, quando tinha meus 16 anos. Eram outros tempos. Admiro, modéstia à parte, um adolescente juntar dinheiro, para comprar um “grosso livro” dessa envergadura, mortificando outras coisas mais prazerosas e mais baratas como chocolate e sorvete, de frívolas importâncias que derreteriam.  
          Tudo atraía Milton, sobretudo, nessa 25ª. Edição, Euclides da Cunha, escrevendo, com o seu próprio bico de pena, correções e alterações. E os editores, também à mão: “Livro que deve servir para a edição definitiva (4ª)”. Quanto às reedições, foram bem maiores, continuam os editores: “À primeira edição deste livro, 1902, sucederam-se, em 1903 e 1905, a segunda e a terceira, todas impressas pela firma Laemmert&C.a., tendo nós adquirido, à falência dêstes editores, e depois da morte do autor em 1909, a propriedade da obra, publicamos, em 1911, a edição. Os Editores – 1914”.
          A curiosidade do Professor Milton era insaciável, prometendo, à cada ilustração vista, organizar uma caravana, comigo, Astenio Fernandes e Manuel Jaime, para Canudos, para visitarmos o topos daquela escandalosa guerra; pisarmos o mesmo chão, solto ou batido, por onde andaram, heroicamente lutando, Antonio Conselheiro e seus beatos, contra a sanha das tropas federais de soldados. Nossos circunstanciosos apegos ao livro me convenciam de que Milton não resistiria pedi-lo emprestado. Mas, exemplarmente, em almoço oferecido a ele e à sua companheira Alcione, ele devolveu o livro melhor do que foi, sob repetidos agradecimentos.
          Foi quando li para ele a passagem mais linda que me lembra as aulas de Literatura Brasileira, no Seminário. O professor Padre Luiz Gonzaga de Oliveira, também exímio latinista, da APL, recitando de cor: “Fechemos êste livro. Canudos não se rendeu. Exemplo único em tôda a história, resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do têrmo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados”.