O menino poeta de Mari
Não conheço pessoalmente o garoto de quinze anos que decorou
meu folheto “História da Rádio Comunitária Araçá em versos” e – pelo
que me contaram – declama em todo lugar. O nome da figurinha é
Alysson Oliveira, estudante do ensino médio. O rapaz se diz “poeta
lírico”, produz uns versos românticos, na contramão da produção dos
raros adolescentes que ainda escrevem poesia, geralmente com temas
leves que remetem à infância, ao folclore ou à natureza. Ele se dedica à
poesia dentro do protocolo dos trovadores impregnados de
arrebatamento pelos respectivos xodós. Breve espiada sobre o trabalho
de Alysson: “Teu olhar me inspira / Me faz suar, me tira o ar / Quando teu
olhar tocou o meu / Foi como um tiro certeiro / Me tirou da brisa / Me
botou no escanteio / O que sou, senão / Um sentimento alheio?”
Quando eu tinha quinze anos também já escrevia versinhos, mas
sobre outro tipo de apego. Eu pensava contribuir efetivamente para a
grande revolução mundial com poesias altamente engajadas e mal feitas.
Era a tal arte em ação, poema transformador, míssil destruidor das
estruturas viciadas na sociedade. Não deu muito certo, quase ninguém
leu esse gênio incompreendido da geração mimeógrafo. Da minha
poesia que queria ser marginal, sobrou um livreto devidamente
mimeografado que atende pelo nome de “Lira desvairada”, inspirado em
Chacal, Cacaso, Paulo Leminski e Torquato Neto. Contribuí em 1970,
aos quinze anos, com a imprensa alternativa matuta, editando o primeiro
número do meu Jornal Alvorada. Minha geração começava cedo a
publicar dentro do espaço “marginálio”, jornais e livros clandestinos e
iconoclastas com o propósito de rasgar os protocolos do jornalismo
daquela época, avesso às informações e ideias contrárias ao status quo.
O poetinha de Mari tem as “minas” como eixo claro de interesse.
Nessa idade a criatura já se queima naquela brasa de que fala Luiz de
Camões, porque “amor é fogo que arde sem se ver, é ferida que dói e
não se sente; é um contentamento descontente, é dor que desatina sem
doer”. O que me comove, no entanto, é a curiosidade e o entusiasmo
com que o garoto leu, decorou e recita publicamente o folheto “História
da Rádio Comunitária Araçá em versos”, talvez orgulhoso da memória de
luta do seu povo em defesa da estaçãozinha de rádio que é a voz da
comunidade ou, quem sabe, por ter um parente integrante daqueles
episódios narrados no livreto. Não sei. A rádio foi ao ar pela primeira vez
em 1998. Alysson nasceu em 2007. Entretanto, nada vem de graça para
ele, nem para ninguém. Nossa história é sempre a continuidade das
ações dos nossos antepassados. O livreto veio para fundamentar com
dados históricos seu saber a respeito daquela aventura coletiva de que
trata meu cordel. O que sei é que o declamador deve perceber e
assimilar os episódios da obra, e o trabalho fala de sua comunidade, de
pessoas que vivem ao seu lado no dia a dia. A rádio tem apenas vinte e
quatro anos. Os sucedidos ainda permanecem na memória coletiva.
Dizem que o jovem Alysson Oliveira vai à bodega e o pinguço pede para
ele declamar o trecho onde falo do meu programa “Seresta brasileira”,
que reunia os mais talentosos seresteiros e tomadores de “mel de tubiba”
de Mari. Ou a senhora da Pastoral da Criança levando o jovem
declamador para recitar meu livro na reunião da Igreja. Sim, porque a
rádio comunitária ajudou muito aquela gente no fortalecimento de sua
autoestima e a preencher um pouco o vazio espaçoso da falta de
perspectiva nas vidinhas daquelas quebradas.
Em verdade, desde que cheguei naquela pequeníssima estação de
trem a caminho do brejo paraibano, antigamente chamada Araçá, no
distante ano de 1988, foram todos muito inaugurais os episódios ali
vividos e concebidos por mim. Criei o primeiro grupo de teatro, a primeira
liga de futebol, o primeiro time da categoria infantil, o primeiro jornal
literário, a primeira diretoria do partido de esquerda e a primeira e única
estação de rádio comunitária. Agradeço aos meus chefes por terem me
transferido para essa cidade, como castigo por ter fundado o sindicato
dos trabalhadores ferroviários da Paraíba. Não fosse esse assédio moral
de caráter despótico, não estaria eu aqui hoje impactado pelo orgulho de
ver um rapaz de quinze anos interessado em poesia e soberania popular,
inspirado em um folheto de autoria do velho Leão.