AS RAZÕES DO LOBO

A placa diante da Intendência dizia: “Estamos há 18 dias sem mortes”. A última tinha sido a de Bento. Depois de todo o inferno que atravessara, morrera na cama, de infarto fulminante. Era a alma do lugar. Nenhuma situação, por pior que fosse, abalava seu senso de humor. Tinha 55 anos, quando a expectativa de vida atual era de 45. Um verdadeiro ancião. O funeral fora o mais concorrido de que se lembrava, um dos poucos realizados sem anteparas de proteção e lugares marcados para manter o distanciamento. Com a morte dele, os muros pareceram se estreitar mais um pouco e os tons de cinza e oliva ficaram mais nítidos. A impressão predominante era de sufocamento.

Passou pelo edifício médico. Cantinho da sequela, como o chamava Bento. Lá ficavam os que não podiam trabalhar normalmente, a maioria por causa dos efeitos neurológicos da Covid. A economia mandava que se ocupassem. Costuravam uniformes e dobravam a roupa lavada, entre tosses e tremores. Por pouca que fosse a contribuição, era necessária para a ordem do local.

Ele andou para o edifício seguinte, mais um entre os trinta que compunham o condomínio cercado. Coçava distraidamente o local do chip no pulso, que continha seu cadastro único e todas as demais informações, incluindo ficha médica. Todos os abrigados usavam o chip. Era um símbolo da permanência da vida sob qualquer circunstância. Provava que ele era um cidadão. Estava seguro. Fazia parte de uma comunidade estável e tinha suas obrigações a cumprir. Quando lembrava das alternativas, sempre coçava o pulso, sua versão adulta do cobertorzinho. Puxou a manga e apresentou o chip ao sensor da portaria. Como estava com a vacinação em dia, a porta se abriu e ele entrou, encaminhando-se para os elevadores que o levariam à escola militar. Todas as escolas eram militares e todos os núcleos de sobreviventes eram organizados como quartéis.

Há trinta anos, em 2019, um vírus da família SARS-COV começou a se espalhar pelo mundo a partir de Wuhan, China. Foi o último ano em que se desfrutou do luxo da individualidade. O ano seguinte foi o início do confinamento progressivo da população. Medidas sanitárias foram tomadas, mas, por conta de diversas exceções à regra que cada um se concedia, não foram eficazes para deter as novas ondas de infecção e consequentes mutações do vírus. A humanidade se reduzira a um quarto do que era antes. Vacinas eram criadas sucessivamente. O traje padrão de bioqueratina protegia tanto do contágio quanto das criaturas. Era recoberto por escamas de queratina e contava com solas articuladas de kevlar, calça e blusa unidas na cintura por uma faixa magnética, assim como as luvas às mangas compridas, e capacete de ombro com um grande visor reticulado. Astronautas de lantejoulas, era como Bento os chamava, com uma piscada bem-humorada de olhos.

E as criaturas! Com o diâmetro da antiga moeda de um real, pareciam descender das amebas gigantes da Fossa das Marianas, mas não toleravam água salgada. Iniciavam a mitose logo depois de se alimentar. Os animais de sangue quente eram a presa desse caçador impiedoso. Certa vez, viram uma colônia se aproximar de um pequeno rebanho de gado. Tatearam os cascos com seus pseudópodes sem achar nada comestível e já se afastavam, quando encontraram um boi machucado. Havia um rasgo no couro do animal e logo uma fileira deles se introduzia pela brecha. O boi foi devorado em pé, começando pelos quartos traseiros, enquanto a parte dianteira mugia aterrorizada. Limparam toda a carne e ossos em questão de meia hora. O ácido que recobria os protozoários queimava e dissolvia os tecidos vivos sem possibilidade de ajuda. Sobrou o couro perfeitamente limpo na parte de dentro, os cascos e os chifres. Piranhas sem dentes, dizia Bento. Malditas piranhas sem dentes. Contavam histórias do início da infestação em que uma colônia delas conseguiu entrar por um furo no encanamento de água de um bairro. Darwin pensava sempre na surpresa dos moradores quando, ao abrir a torneira, saiu um fio gelatinoso em vez de água. Muitos escaparam com queimaduras enquanto o restante, reduzidos a cabelos e unhas, jazia para sempre no piso de suas cozinhas, nas lavanderias e piscinas, causando a evacuação de uma zona urbana inteira. Isso foi antes de adotarem os condomínios militares como solução de moradia para os sobreviventes.

Darwin chegou à escola e encostou o ouvido na porta. Silêncio. As crianças deviam estar na hora da soneca. A creche ficava nos dois últimos andares e era ligada por passarelas aéreas ao edifício seguinte, o da quarentena. Era a rota de fuga dos preciosos frutos da espécie humana. Não era hora da visita dos pais, mas ele queria ver os gêmeos por alguns instantes antes de sair em patrulha. Darwin trabalhava no novíssimo Ministério de Defesa, na área de biotecnologia. Deveria estar num laboratório procurando novas maneiras de enfrentar as duas ameaças, mas não se importava de sair à caça de aglomerações de amebas quando o pessoal escasseava. A abordagem usada era manter os números sob controle. Não havia como eliminar totalmente um organismo que se multiplicava em progressão geométrica. Esperava que aquele fosse um dia bom. Um dia em que poderia jantar no refeitório comunitário, sem nenhum buraco no corpo e nenhum vírus no organismo.

Os gêmeos dormiam lado a lado no tapetinho da soneca. Tão pequenos. Sempre lhe pareciam mais pequenos do que eram. Iriam cursar a escola e ter um emprego. Como soldados ou como civis, não importava. O essencial era que tivessem uma chance de viver uma vida razoavelmente normal. Mais uma vez, pensou como a humanidade procurava desesperadamente voltar à antiga organização social pré-pandemia e em como o futuro era incerto. A impossibilidade de prever todas as variantes do caos fazia com que muitos dessem baixa no hospital por pânico e transtornos de ansiedade. Ele ainda estava funcional, pensou com uma certa ironia. A não ser pelos episódios de ausência, de total cansaço e frustração acumulada. Algo dentro de si fazia força para irromper aos gritos, algo que se sentia triturado e dissolvido pelo atual estado do mundo.

Após alguns momentos de abençoado enlevo, desceu para a garagem. O transporte adaptado já estava lá. Os demais membros da equipe chegariam aos poucos. Iriam com os farejadores, os cães Drogo e Frodo. Eram dois belos collies - quanto mais pelo, melhor - treinados para encontrar colônias e dar o alarme. Ele gostava de cachorros. Sempre se perguntara como a evolução fizera tantos tamanhos e formatos a partir do lobo primordial. Como o instinto se dobrara, perante qual necessidade, para tornar o cão dependente do homem? Toda adaptação é feita visando a sobrevivência. No ambiente revolucionário do Neolítico houvera alguma vantagem em subordinar a matilha ao comando humano.

O traje pinicou um pouco nas costuras das axilas. Distraidamente puxou o tecido, conferindo o celular. Nenhuma informação nova sobre a Área 22. Era a plantação de laranjas e havia uma equipe de catadores recolhendo os frutos que a colheitadeira deixara para trás. Garantir a segurança dos trabalhadores era trabalho do Exército. Eles iriam apenas verificar a eficácia do novo artefato e, quem sabe encontrar alguma preciosa fruta para as crianças. Elas só saíam da segurança dos muros em ônibus especiais, com segurança rígida. Poucas tinham lembranças de brincar livremente em um ambiente não controlado. Tudo caipira de apartamento, disse a voz de Bento em sua mente.

Colocou o capacete rígido nos ombros. Como acontecia frequentemente, ao se ver dentro da cápsula transparente, pensou na mulher. Nos seus olhos. No seu desespero quando entendeu o que estava acontecendo. Estavam no Trevo do Manso, na metade do caminho o quartel da Chapada dos Guimarães, e fora do quartel só havia a terra sem lei. Sobrevivia-se pela brutalidade. A civilização ficaria para depois que estivessem intramuros. Perdia-se a individualidade, mas livrava-se da barbárie. Reviu a si mesmo espancando-a para roubar a água. Na sensação da carne cedendo aos golpes com barra de ferro. Um engulho de náusea percorreu seu corpo, e mais uma vez disse que fizera pelos gêmeos. Um dia sem água aos dez meses de idade era desidratação garantida. A esposa não perguntou onde ele a conseguira: com o rosto sério e calmo, tomou da garrafa e preparou a mamadeira, primeiro para um, depois para outro. Ela entendia. Não era o momento de fazer perguntas. Fiz por eles, fiz por eles, fiz por eles. Tentava, com a voz mental, apagar a imagem recorrente. E a sensação que tivera ao lado do corpo morto. Esta era a pior parte. Sentira-se finalmente forte e capaz, como um caçador que abate sua presa. Exultara. A satisfação era imperdoável. Talvez ele fosse um assassino inato. Todos nós somos lobo e cão, diria Bento, se algum dia tivesse tido a coragem de contar ao amigo o que fizera.

Um comboio de vacinas acabava de encostar no portão. Subiu a rampa e parou diante da guarita. A primeira cancela se abriu e o tanque da frente encaminhou-se para a câmara de desinfecção. Em três minutos, entraria o segundo, o terceiro e enfim poderiam sair. O quarto veículo era o caminhão de quarentena. Então ainda tem sobreviventes em Cuiabá, pensou ele. Imaginou-os sujos, famintos e amedrontados. Olhando para tudo com olhos grandes e opacos. O medo é o que nos faz identificar o outro como inimigo. O medo fez com que usasse a barra de ferro em vez de simplesmente arrancar a garrafa das mãos da mulher e sair correndo. Por outro lado, o medo o manteve atento na caminhada, evitando tanto a presença humana quanto o perigo gelatinoso.

O laranjal ficava a menos de cinco quilômetros. Os testes seriam realizados ao mesmo tempo que as atividades rotineiras. O novo artefato era um aspirador-triturador, tinha acionamento manual e um reservatório expansível. Usar o aparelho significava que precisariam estar cara a cara com as amebas. Encarar de novo o predador do homo sapiens. Chegaram no exato momento que o transporte de trabalhadores se preparava para voltar. Eram presidiários cumprindo sua cota de horas nas tarefas de maior risco. A população carcerária era muito reduzida. Geralmente eram as vias de fato a causa da prisão. As pessoas descontavam a frustração umas nas outras. Resquícios do ego. Sem competitividade, o ser humano precisava buscar sua adrenalina em outras fontes. Não havia mais tesouros a saquear na casa alheia, nem dinheiro para promover a divisão de classes. O que contava era preencher a cota de horas trabalhadas. Os antigos milionários geralmente não gostavam do novo sistema. Não tinham mais pelo que competir. Nenhum privilégio. Seus antigos Porsches eram agora peças de museu. Jovens aprendiam a dirigir no volante de Lamborghinis, quando havia gasolina. Finalmente um mundo de igualdade, pensou com sarcasmo. Todos os apartamentos iguais, todos os lençóis da mesma cor, o mesmo cardápio para todos. Um mundo uniformizado, praticamente monocromático e sem critérios de comparação. E sem desfiles de moda, sussurrou a voz de Bento no seu ouvido mental. A ordem militar tinha nascido do caos e, com suas fronteiras rígidas, era também um confinamento. E quando já fomos livres? pensou Darwin. Talvez na infância. Talvez diante do olhar confiante dos cães. A vida em sociedade sempre seria restritiva.

Algo refletiu a luz do sol em meio a um grupo de goiabeiras. Fez sinal para o companheiro e encaminharam-se para o local. Os cães apontaram: tinham um alvo. A colônia era pequena e estava perfeitamente visível à luz decrescente da tarde, emaranhada na vegetação rasteira ainda úmida de chuva. Parte dela escalava um tronco. Apontou o artefato antes de dar o próximo passo. O motor começou a funcionar com um ruído alto e agudo enquanto se aproximava. Tocou no primeiro aglomerado. O aspirador funcionou. As pás trituradoras estavam girando. Os restos saíam pelo cano posterior. No entanto, um dos cães se aproximou. Tinha treinamento para não fazer isso, mas ainda era um filhote impulsivo. Queria ver de perto. De boca aberta, com a língua de fora, sem ouvir a ordem de parar por causa do barulho do motor, encaminhou-se para o inexorável desfecho com a inocência de uma criança. Rapidamente a colônia entrou-lhe boca adentro e começou seu trabalho de dissolução e assimilação. Desligou o aparelho e correu para o cão, seguido pelos colegas. Desesperados, os homens tentavam retirar as amebas com as mãos enluvadas. Para cada punhado que puxavam, outro entrava por todo espaço disponível. A agonia do cachorro era indescritível. Em questão de minutos, Frodo, o inteligente e amoroso Frodo, estava reduzido ao couro e às unhas. As amebas voltaram a se reagrupar.

O sol atingia o ponto mais baixo do horizonte, colorindo as nuvens com todos os tons de um hematoma. Na terra, a três passos do aglomerado fervilhante, rodeado pelo mundo que se preparava para mergulhar na escuridão, sentindo mais do que nunca o insulto que era a vida humana sobre a face da terra, Darwin chorou.

Tangará da Serra, 02/02/2021.

Lucimara Vaz
Enviado por Lucimara Vaz em 30/08/2022
Código do texto: T7594741
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