O INDIO DO BURACO

O corpo foi encontrado no dia 23 de agosto de 2022, deitado em sua rede. Parecia estar apenas contemplando o céu, onde seria doravante mais um dos encantados, depois de tantos anos de desencanto. Poria termo ao seu vaguear pela floresta, afinal caladas as vozes das lembranças, pousada no chão a derradeira flecha. Mais um indígena morto antes de ver florescer a esperança.

Acendia o fogo todos os dias pois não sobrara ninguém para manter as brasas acesas durante a ausência dos caçadores. Sozinho erguia a moradia, sozinho caçava e cozinhava. Ninguém para ajudar a limpar a caça. Nenhuma voz a não ser a da floresta, múltipla de tons e de espécies, mas nenhuma delas familiar como a voz dos seus. Nada mais era seu. Nada havia para pensar. A vida prosseguia sem sequer notar o grãozinho de areia isolado em sua engrenagem, de toda finalidade sequestrado, a não ser a de simplesmente sobreviver. Nenhuma depressão levou tão longe no espírito humano a falta de sentido da existência quanto foi levada nele. Não havia ninguém por quem viver, a quem se dirigir, com quem trabalhar. Era o ser humano puro e magoado, mantido em pé apenas pela energia da mata secular.

Em toda casa em que se abrigava, havia um buraco. Não mais o totem dentro da oca principal e sim, um buraco. Neste profundo nada, onde nem terra havia, estava todo o seu povo, toda a sua identidade: a língua que até o momento não sabemos qual era, o modo de preparar o peixe, as histórias a contar para as crianças de olhinhos de jabuticaba, o companheirismo e as memórias. Os ancestrais. O futuro. Tudo se resumira, agora, a um buraco no chão de seu modesto tapiri. Ele era “o índio do buraco”.

Ele estava consciente das dimensões da tragédia. Sabia que todo um povo - o seu - iria morrer quando não mais pudesse continuar. Carregava a culpa de não poder adiar eternamente o desfecho, o desespero de não poder recomeçar, sua dimensão humana se achatando perante a brutalidade do decreto, solitário como o último de uma etnia extinta.

Ele restava vagando pela Terra Indígena (TI) Tanaru, perto da divisa do município de Corumbiara, em Rondônia. Seus olhos viram todo o seu povo perecer nas mãos de invasores: madeireiros, mineradores, caçadores e, por fim, os fazendeiros, que se encarregaram de dar cabo dos últimos. Restava ele. Determinado a não se aproximar da dita civilização e suas doenças devoradoras, suas armas de fogo, sua falta de humanidade. Escolheu ser indígena isolado e como tal foi respeitado e protegido pela Funai nos últimos 25 anos.

Será sepultado sem que conheçamos seu nome, sua língua, sua etnia. E, não havendo descendentes, também será esquecido em mais ou menos uma década. Em nome do progresso dos brancos, um povo inteiro foi eliminado sem deixar semente: e fim.

Tangará da Serra, 28/08/2022.

Lucimara Vaz
Enviado por Lucimara Vaz em 28/08/2022
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