PASSAGEM DE ÔNIBUS
Sábado à noite. Estava eu a fazer meu habitual trajeto de ônibus, do Centro de Niterói, até o bairro onde moro, o Fonseca. Entrei no coletivo, paguei a passagem. À minha frente , encontrava-se um rapaz. Bem jovem, devia ter uns dezessete, dezoito anos. Encostava repetidamente o cartão de passagem no visor, mas deste não saía o esperado sinal de " passe".
Vendo que eu aguardava , o sujeito me cedeu a vez, ao que atravessei sem problemas a roleta, e passei. Avistei um assento vago no lado esquerdo, por ali mesmo. Sentei.
Nestes instantes iniciais de viagem, permaneci por algum tempo observando, relaxadamente, tudo. Mas sem fixar-me em nada. Porém, voltou logo a chamar- me atenção o tal rapaz. Existia nele algo de simpático, doce, afetuoso.
Ainda não tinha conseguido passar. Comunicava -se com uma pessoa que estava sentada nas fileiras do meio. Uma mulher, moça. Esta, pouco depois, dirigiu -se a um assento paralelo ao meu, do lado direito, a fim de ficar mais perto dele.
Abriu a bolsa, retirou um outro cartão. Entregou ao rapaz. Ele tentou novamente . Várias vezes. Será que agora ia ? Não....
A viagem seguiu. Estávamos ali quase entrando na avenida da rodoviária.
Da conversa entre o rapaz e a moça, que logo percebi tratar-se de um casal de namorados, consegui entender que estavam vindo de Icaraí, um bairro próximo, e que haviam usado os cartões no ônibus de mesmo número, pouco tempo antes.
Ele então conversou com o motorista, explicou- lhe o ocorrido . Este lhe diz que não havia dado tempo suficiente para que o cartão fosse reutilizado com sucesso.
O impasse permaneceu. O casal se entreolhava. Conversavam , agora, em silêncio. A ansiedade aumentava. Entre os balbucios emitidos por ele, pude ler: " Que merda." Ele me olhou, disfarçou um pouco, afinal de contas já era um homem. Mas pude perceber na sua expressão um pedido de ajuda. No fundo, queria que eu o salvasse daquela situação. Interpretei sua demanda assim: " Paga a minha passagem?"
Senti um impulso de sacar a carteira e liquidar o assunto . Dar uma de herói, de paizão . Ainda olharia para ela, a namorada, por sinal bonita. A idade devia regular com a dele, e diria: " Tá aqui, ó, pronto!". Meu outro impulso era gritar para ele: " Ah, pule logo essa roleta, cara!"
Hesitei. Me contive . Pensei : " Que ganho eu, sempre a querer tapar o buraco, a falta das pessoas?" Os dois já são bem grandinhos, precisam aprender a calcular esses tempos de recarga dos cartões.
No entanto, permaneci atento ao contexto. Como se eu fosse imprescindível, e eles não pudessem resolver sem mim. Que ilusão de importância temos às vezes, não é mesmo?
Acabei fazendo uma pergunta idiota para a moça, daquelas que se faz quando se está ansioso. " Mas vocês não tem quatro reais para dar ali?". Claro que não. Se tivessem, já teriam dado. Ela responde: " Não temos. Só saímos com esses cartões. " Perguntei a ele: " Onde você mora? " Ao que responde: " Aqui no Fonseca mesmo".
Viagem continuava. Ela olhava para ele, queria protegê- lo, tirá- lo daquele embrulho. Estava inquieta . Confesso que cheguei a ficar com uma ponta de inveja do incauto...
Inveja!? É, inveja... Nós, seres humanos, tão cheios de claros e escuros...
Lembrei da frase freudiana: " Seríamos melhores, se não quiséssemos ser tão bons." Falando em Freud, meu superego me cobrava : " Seu sádico! Pague logo a passagem do menino!". " Menino", vejam só...
Às vezes, esse tal de superego é um monstrinho bem cruel.
Viagem seguia. Agora adentrávamos um túnel, que ia dar num lugar chamado " Ponto Cem Réis". Já era o bairro do Fonseca, onde moramos.
Disse ao rapaz, em tom imperativo e paternal: " Pergunte ao motorista se ele vai deixar você descer pela porta da frente". Se ele não deixasse, eu iria pagar a passagem. Não iria permitir que o " menino" ficasse preso. Como se ele não pudesse simplesmente evadir-se por conta própria, quando a porta da frente do ónibus abrisse.
Falou com o motorista, que consentiu em deixá-lo descer, quando chegasse o seu momento de saltar. Estávamos, nesse momento, próximos a um colégio chamado Nossa Senhora das Mercês. Resolveu tentar passar novamente o cartão, e de repente... sinal verde! Ufa!
Passou de peito aberto naquela roleta, triunfante, quase como quem vai subir num pódio e receber uma taça . Fez para mim um sinal de ok, e exclamou : " Valeu, irmão"! Sentou logo ao lado da namorada. Acenei para eles, exclamei: " Isso é pra fortalecer o amor!"
Lembrei tanto de meu pai quando falei isso... Ele tinha essas tiradas engraçadas.
A moça, aliviadíssima, sorriso aberto, de orelha a orelha, deu uma sonora gargalhada, e disse : " Pois é! O perrengue, né! " Logo depois, levantaram -se para saltar do ônibus. Haviam chegado ao seu destino. Passaram por mim, alegríssimos, e me fizeram novamente um gostoso sinal de ok.
Fiquei feliz por eles. Isso alegrou minha noite. Ficarão mais juntinhos, mais unidos, depois dessa situação em que vivenciaram, momentaneamente, uma falta, uma pequena distância.
Com isso, distraí-me um pouco. Atenuaram-se, ao menos momentâneamente, as dores da minha alma...
Leonardo Alvim Corrêa
24/5/21