As paradas

Acordou às 4h da manhã, gripado e, de quebra, com uma leve dor de cabeça. Para remediar a gripe, foi à torneira, recolher água, para preparar um cafezinho em sua recém adquirida cafeteira elétrica, italiana. (Viu, ouviu ou leu em algum lugar que café é excelente antigripal, principalmente feito em uma cafeteira elétrica italiana). Reuniu os ingredientes necessários: água, café em pó e o manual de instruções, que leu em trinta minutos, e foi o suficiente para o instruir sobre as configurações básicas do aparelho.

Depois de se certificar de que havia colocado a água no local certo, isto é, no filtro, depois de ligar a cafeteira na tomada, depois de apertar o botão mágico, a cafeteira italiana começou a trabalhar por conta própria. A essa altura, além de gripado e com leve dor de cabeça, achou-se muito inteligente, um homem quase integralmente incorporado à sociedade contemporânea. Pensou consigo mesmo: "Agora, que o remédio da gripe está em confecção, é preciso desativar esta leve dor de cabeça". E saiu à calçada de casa, sem camisa, descalço, mas de bermuda.

No caminho, antes de chegar ao destino, parou três vezes.

A primeira parada foi para olhar-se ao espelho da sala de estar, por vaidade, ou superstição mesmo. Não se sabe ao certo. Gastou meia hora olhando-se, mas não lhe agradou o que viu: um homem de trinta anos aproximados e já possuidor de rugas, algumas dezenas de cabelos brancos e visíveis olheiras. Deliberou, após breve consulta interior, fechar os olhos por três segundos, para ver se amenizava a visão pessimista. Quando abriu os olhos, estava em direção ao portão, mais ou menos em frente à porta de seu quarto, longe de sua visão exterior. Aí, infelizmente, ele avistou sua cama, e como estava descoberta, resolveu forrá-la. Eis sua segunda parada, a menos grave e que durou apenas dez minutos.

A terceira, durou impressionante uma hora, e foi por capricho estético-religioso. No trajeto entre o quarto e a sala de estar, há, fixado na parede um retrato do Sagrado Coração de Jesus. A imagem estava de cabeça para baixo, e seus olhos atentos perceberam quase que instantaneamente o desarranjo. Ele estancou diante do retrato, mexeu-o com as mãos e o pensamento, percebeu alguma poeira envolta, assoprou-a sofregamente; por fim, pôs o retrato em sentido vertical, e achou que assim deveria ficar. De modo que, sem o advento de outros imprevistos, e apenas contando com dois tropeções e um abalroamento pelo caminho, chegou ao destino, sem camisa, descalço, mas de bermuda.

Impreterivelmente às 9h, na companhia da leve ou alcoólica dor de cabeça. Chegou e encostou-se à parede, mexeu no bolso da bermuda, não achou dinheiro, mas encontrou cigarro; apalpou o outro bolso, esbarrou em algo igualmente pontiagudo: fósforo. Juntou o útil ao agradável, fez uma tocha, levou à boca. (Viu, ouviu ou leu em algum lugar que cigarro é excelente no combate a dor de cabeça leve ou alcoólica).

Ali ficou, fumando no portão, fazendo o que sabe fazer muito bem: dando exemplarmente maus exemplos. Ficou pouco tempo em cartaz, porém, porque logo toda a vizinhança ouviu o estrondo, vindo do interior de sua cozinha: era a cafeteira elétrica e italiana pedindo socorro.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 27/08/2022
Reeditado em 27/08/2022
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