Campo Grande, a minha querência.
Minha cidade não tem mar, nem montanha e também não tem dono. Certa vez, eu criança, ouvi alguém falar sobre a lâmpada mágica de Aladim. Era só esfregar a tal lâmpada para libertar um gênio e então, de tão agradecido, o ser encantado realizaria três desejos, fossem eles os mais difíceis e até impossíveis. Naquele instante, formei na mente os três pedidos que faria ao encontrar a lâmpada mágica: eu seria o dono da minha cidade e ela teria mar. Para ficar ainda mais bonita, traria para bem perto a montanha exposta no quadro preso à parede na casa de um amigo. A montanha tinha uma pontinha branca – um escorregador, pensei – mas logo me disseram que a ponta era de gelo e a montanha existia no Japão.
Onde se esconderá a lâmpada mágica? O mar serviria para lavar meus pés nas ondas salgadas, a montanha um refúgio de todo o mal, e ser dono da cidade, bom, isso eu nunca soube explicar.
Foi o primeiro sonho de criança e isso já faz um bom tempo.
A minha vida nesse canto do mundo é quase um conto de Cortázar. Ou algo mais ingênuo, uma fábula, restinho de coisas grudadas em mim. Na origem, o destino de Corrientes, resultado da guerra que não vi. Por causa desse triste evento, arrasto entre os braços, uma invisível harpa guarani.
Se não fosse a guerra, já diz a canção, nada disso existia. Porém, há a poeira de antes...
Vim lá do barro vermelho, da terra margeada pelas matas repletas de guaviras, onde as vezes a coruja apanhava do bem-te-vi, eu vim do bairro Guanandi.
Minha avó incendiava as folhas secas caídas no quintal nos fins das tardes. A coivara se espalhava junto com o cheiro de coisa acabada, a fumaça subia, indo de encontro à revoada das andorinhas e o céu ficava completamente alaranjado, como se a poeira subisse, misturada com a chama das folhas, até se perder no horizonte, batendo palmas para a lua cheia que nascia.
Em todas as lembranças que tenho, a lua é sempre cheia.
No Guanandi do meu tempo de criança, quem tinha um par de calçado era considerado bem de vida, mas o meu chinelo era amarrado por um grampo de cabelo da tia Eurinda. Mas que isso traz de ruim se engulo uma saliva seca de saudades daqueles tempos? Existia um fio de alta tensão entre os galhos do pé de ingá e a gente passava entre ele fazendo algazarra. O perigo estava por perto, mas quem imaginaria levar um choque trepado numa árvore tão imensa? No final da feirinha do Taveirópolis, tinha a guerra das frutas podres, levei tanto tomate na cabeça, o mesmo tanto que acertei nos amigos de infância. Onde estarão aqueles tantos amigos? Saudades, saudades, das minhas coisas de antes, da bola de capotão, da trave feita de madeira seca presas às forquilhas feitas a faca.
O passarinho caçado pelos tiros de funda, balas de mamonas, nunca foi acertado, e às vezes, o vejo pousar na janela aqui de casa. Ele canta e eu escuto. É o mesmo bicho que me faz sentir a raiz grudada nesse chão. Vire o planeta de ponta cabeça, chacoalhe, e eu cairei em algumas das tantas árvores de Campo Grande.
Meu sangue é da cor da casca da mandioca, e quanto mais tentam arrancá-la, mais ela penetra no meu peito ardente. Sou nascente de mim mesmo, das águas do Prosa e do Segredo, das paredes carcomidas do Colégio Oswaldo Cruz. O antes vive em mim intensamente. Se voltar mais um pouco no tempo, me vejo num outro quintal, da Avenida Bandeirantes, ainda sem asfalto, da qual o vento trazia a poeira e espalhava as folhas gastas do pé de araticum. Aquelas folhas, o gosto do araticum, ainda se esparramam na saliva da minha boca e com cuidado pousam diante dos meus olhos. Embora o passar do tempo, ainda sinto a palha seca de antes, os carrapichos grudados no meu casaco, por toda vida.
Eu tenho em mim o cheiro do mato, eu sinto as coisas de antes, ainda vejo os caminhões de mudança, a fumaça subindo nos telhados sem chaminés, as andanças de gente pobre, a origem que nunca esqueci.
Muitas lembranças apagam a réstia iracunda, são imagens de paz, uma tábua na qual minha avó lavava a roupa, a madeira tingida de anil, e no canto, esticada por arames farpados, a cerca separando os quintais.
Hoje, as calçadas formigando, nem desconfiam da terra vermelha vibrante, correndo embaixo dos pés apressados. Aos poucos, fui aprendendo cada esquina da minha cidade, o tosco movimento das ruas no início, o murmurinho de gente cada vez aumentando, as filas de carros que (hoje) as vistas não mais alcançam.
A cidade cresce e a gente não repara.
Mas olhem as coisas antigas, as casas fantasmas da Avenida Calógeras, os paralelepípedos da vila dos Ferroviários, os pregos enferrujados que ainda sustentam a passarela da antiga rodoviária, nesses lugares restam a poeira de antes, dos tempos que a cidade era cortada por um enorme trem azul e branco. A poeira, restos do chão vermelho, o cheiro de antes estão ali para sempre.
Embaixo da Rua Maracaju corre o rio silencioso, saibam que a água não é a mesma que passou, mas ela ainda me banha, calma e serena.
Sobrevivi ao inverno de 1975, estou ficando velho, às vezes, fechando os olhos, enxergo a Avenida saída do Guanandi que dava no Morenão, aqueles domingos repletos de gente, de um lado os colorados, do outro os alvinegros, caminhando rumo à disputa da qual nunca sabíamos qual seria o vencedor.
Era alegria ou dor. Hoje é um suspiro de saudade.
Não encontrei a lâmpada de Aladim, Campo Grande não tem mar, a montanha permanece distante, mas a cidade tem donos, os aqui nascidos, como eu, também aqueles que ela adotou e (talvez não sintam) carregam as raízes encharcadas pela lama, fincadas para sempre no nosso chão vermelho.
Termino banhado em lágrimas, os dedos ligeiramente trêmulos, emocionado pelas imagens que agora me chegam, as lembranças dos meus mortos, os rostos que nunca mais vi, estão cobertos na terra vermelha, a mesma raiz de mim, tão plena de ti, minha Campo Grande.
Meus mortos são poeiras espalhadas pela cidade.
E embora muitas vezes os meus pés ameacem sangrar, venho correndo e solto, do longe torto, em seu colo, adormentar. -