Dona Lourdes
Dona Lourdes (José Carlos de Bom Sucesso – Academia Lavrense de Letras)
Hoje, pela manhã, quando me dirigia para o trabalho, encontrei com Dona Lourdes. Ela, de cabelos brancos como a neve, trajada com a blusa na cor palha, saia na altura do joelho, sapatos de salto baixo, tendo ao ombro direito a bolsa preta, de tamanho médio e caminhando a passos largos, atravessa a faixa para pedestre na movimentada avenida.
No rosto gasto pelo tempo, escondido por algumas maquiagens, tendo os grandes óculos protegendo os negros olhos, fitava o outro lado da avenida. Os olhos moviam-se repentinamente, como se estivessem procurando por algo. Talvez o belo e grandioso canteiro de flores, que se misturava entre margaridas, rosas, beijos e algumas hortênsias.
Assim que ela me viu, o airoso sorriso se abriu, mostrando os cândidos dentes, que se misturavam no ornamento do batom na cor vermelha. Parou-se por alguns instantes, pois ainda não havia me reconhecido. Os olhos grandes foram vistos quando ela, imediatamente, desceu, com a mão esquerda, os óculos, deixando, assim, ver que os verdes olhos fitavam para meu lado. Uma dúvida, portanto, pairava sobre ela: Quem será esta pessoa que está à frente? Não se esquivando, ela, mais uma vez espreitava mais rapidamente. Talvez a mente não se lembrava, mas em gesto de educação, aos poucos foi aproximando e exclamou:
- Quem é o Senhor?
- Não me lembro de sua pessoa. Nem mesmo sei que a mim cumprimenta...
Então respondi:
- Esta pessoa a quem a Senhora vê, há algum tempo, onde as crianças se arrumavam bem, vestidas de uniforme, tendo o bordado da escola trazido sobre o peito, de sandálias ou sapatos, trazendo na mão direita a pequena pastinha cheia de cadernos, livros, lápis, canetas, borrachas, régua, lápis de colorir e não faltando a velha e companheira tabuada.
- Pendurada sobre o ombro esquerdo, às vezes querendo escorregar, bem tampada, pois dentro continha ou pão com manteiga, ou pão com carne, ou broas, ou pães de queijo, ou biscoitos, ou doces, enfim, a denominada merenda, que carinhosamente hoje é chamada de lanche. Junto ao alimento, embrulhada na pequena toalha, às vezes branca, rosa, vermelha, amarela, não importa a cor, que calçava a garrafinha ou de café com leite, ou café puro, ou leite com chocolate, ou o gole de guaraná.
- Em fila indiana, sempre à direita as meninas e à esquerda os meninos. Bem penteados os cabelos. Às vezes algum distraído nem mesmo o pente trazia. A inspetora de alunos logo aparecia. De cara fechada, usando óculos, com a grande régua de madeira nas mãos, se aproximava e dizia que no próximo dia o distraído esqueceria a cabeça.
- O grandalhão era o primeiro, pois caso não o fosse, no final da aula, na saída do prédio, dizia que o pegaria na rua. A menina chorona, que aos prantos custava segurar a pastinha, pois não estava preparada para a avaliação do dia. O menino gênio, que dizia que não tinha medo da arguição. Estava tudo na ponta da língua.
- Enfim, o menino rico, a menina pobre, a filha da diretora, o neto do professor, a filha do lavrador, o filho do doutor. Até mesmo a neta do promotor de justiça ali estava. O menino calado que virou contador e escritor. A menina pobre, filha do lavrador, que médica se formou. O grandalhão, que hoje é delegado de polícia. A Ritinha se formou em Física e hoje é cientista, enfim, todos tiveram o caminho a seguir.
- Então não se lembra?
Por um minuto se passou. Os verdes olhos e grandes observadores, de dentro deles, algumas lágrimas aparecerem e ela, rapidamente, da bolsa, o lenço tirou. Olhou para mim e limpando as lágrimas, em meu rosto, fitou. Não se lembrava muito, pois vários foram as crianças que ela ensinou. No consciente poderia ser o João, o Pedro, o José, até mesmo o Antônio. Tantos “antônios”, “pedros”, “marias” que ela ensinou. O cérebro dela imaginava tudo. Recordaria de todos os alunos em seus mais de trinta anos de ensino. Sorrindo, ela assim falou:
- Sei que foi meu aluno e que de mais bonito lhe ensinei. Vejo um grande homem em minha frente. Seguiu os meus conselhos, assim o letrado aprendeu. Deve ser o José, o jovem franzino e de cabelos cacheados. Aceita o meu abraço e fico feliz por contribuir com seu desenvolvimento.
Desta forma, de mim se despediu. Andava alguns passos pela frente e lentamente a cabeça virava par meu lado para ver se eu estava ali presente. Os passos dela foram aumentando e sempre olhava para trás, até que sumiu junto a multidão e eu não a vi mais.
Observação: Uma pequena homenagem para Dona Herci Bertoli e Dona Claire Sala, minhas primeiras professoras. Um forte abraço para vocês.