Vulto por dentro
Foi num dia de infância que eu senti um vulto passando pelo meu corpo. Não me lembro bem, mas acho que estava uma noite morna. Eu senti e não soube explicar o que foi aquilo. Senti um frio na espinha. O meu corpo se arrepiou todo. Eu pensei que fosse um fantasma, um morto-vivo sem matéria, transitando do além-mundo ao mundo dos ainda-vivos. Era o que eu poderia pensar. Nem sabia o que era ateísmo. Acho que ainda não havia sequer odiado ateus, antes de me perceber e me aceitar como um deles. Naquela época, eu também testemunhava a passagem do tempo, como eu faço hoje. Mas eu não dava a importância que isso merecia. Eu me sentia como um espião da vida mundana, como eu sou hoje, como um alienígena que disfarça sua verdadeira identidade, de alguém que pensa de maneira completamente diferente ou que aprendeu a seguir por esse caminho, de pensar sem fazer rodeios, sem cair na tentação de se perder da realidade, que é de estar andando em uma linha reta, que parece eterna, mas que terá um fim e sabendo deste fim. Essa habilidade que é não ter nenhuma e apenas aceitar a aridez da vida, sem muitas fantasias ou ilusões importantes escondendo o seu sabor amargo. Eu pensei que fosse um vulto. Hoje eu sei que eu sou um. Um morto-vivo, um vulto que transita entre dois mundos, pois já tenho em mente a consciência dolorosa e absoluta da morte tal como eu tenho a da vida. Eu percebo que eu tenho um outro dom meio indecente, de assustar as pessoas sem querer, aparecendo atrás delas, em momentos absolutamente triviais, sem fazer barulho, tal como um ninja treinado na arte da sutileza, lhes pregando sustos, como aquele vulto que eu pensei que entrou no meu corpo. Minha presença pesada e arrastada, meu excesso de seriedade, mesmo quando eu tento me desconstruir, espero que não um mau presságio, apenas um latino americano melancólico que vê a vida passando sem parar e impotente, lamenta que tudo passe tão rápido.