Aventuras e desventuras de amor não correspondido

 

Embora não seja usual em crônicas, vou dividir meu texto em quatro partes, as quais chamarei de cenários. Antecipo que os amores recíprocos ficarão fora dos meus cenários, e desejo a eles boa sorte.

 

Como sou observador leigo nas ciências da alma, a tudo darei o mesmo tratamento: amores carnais e espirituais, paixões, e até certos curtos-circuitos cerebrais que geram atos incompreensíveis.

 

Cenário 1 – Trânsito quase normal, sem acidentes graves

 

Os amores trafegam pelo mundo afora, de coração em coração, calorosos em diversos graus, e às vezes até ofegantes. Queixumes acontecem, e mais ainda quando as demandas de quem ama não são atendidas.

 

As histórias de amor podem ser complicadas, como nos lembra Carlos Drummond de Andrade, no poema Quadrilha: "João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava (...)

 

E o que fazer nesse caso?

 

Minha resposta: Sei lá. Que se virem. Sou apenas um cronista.

 

Entretanto, com os olhos de cronista eu diria que nas conquistas amorosas quem é muito tímido se dá muito mal. Entre a poucas coisas que sei, disso eu sei por experiência própria.

 

Nunca fui bom em dar conselhos, mas sei de épocas em que cartas de amor (mesmo as ridículas, aquelas citadas por Fernando Pessoa) eram escritas e funcionavam. Parece que tais cartas caíram em desuso, possivelmente tomaram novas formas no mundo digital. As serenatas ficaram perdidas para sempre nas ruas escuras. Gravar corações nas árvores já é crime ecológico, prender cadeados em grades de pontes causa danos ao patrimônio público. Mas não sejamos pessimistas, o palco de quem ama não se perdeu, apenas ficou diferente.

 

Quanto ao “marketing” pessoal, parece que tem ele muita importância e está sempre na moda, embora se aproxime da propaganda eleitoral, enganosa, às vezes. Dois que se amam são eleitores e candidatos que trocam votos recíprocos. Então é preciso conhecer o código eleitoral do amor, e isso varia um pouco, conforme costumes e tradições. Então, viva a propaganda eleitoral e que o mandato (o amor) seja “infinito, enquanto dure” (lembrando aqui o soneto do Vinícius de Morais).

 

Se ao ler esta crônica alguém se enquadrar neste cenário romântico, embora desolador, de amar sem ser correspondido, não se aflija. Empregue a força desse amor na construção coletiva de um mundo melhor.

 

Ah, e música, pintura, poesia, teatro, cinema: faça ou aprecie, sem moderação. Ame a vida e ame-se.

 

Eu sei, falar é fácil, mas neste momento eu sou apenas um cronista olhando a cidade pela janela.

 

Cenário 2: Perigo à vista

 

Os costumes e as tradições têm mudado e muito nos últimos anos. Cuidado tenham os galanteadores de plantão. O código de ética amoroso está com suas balizas flutuantes.

 

Homens e mulheres reivindicam o direito de não serem assediados moralmente. E as mulheres, especialmente elas, cobram na justiça o direito de não serem assediadas ou importunadas sexualmente. A reivindicação é justa e de lei, mas os parâmetros de comportamento são sutis e variam com o andar da carruagem do politicamente correto.

 

Presidentes e diretores de grandes empresas vão para a rua em segundos. Políticos de renome perdem eleitores. Artistas e jornalistas recebem linchamento de seus nomes nos veículos de comunicação. Não se admite, como nunca se admitiu em empresas sérias, o teste do sofá em exames de seleção no departamento de pessoal. É preciso ter prudência nas piadas e nas fotos. Cartas e bilhetes podem ser provas robustas de alguma coisa. Telefones e computadores guardam rastros comprometedores. Há câmeras por toda parte, e elas não mentem.

 

Enfim, é preciso ter em mente que nem tudo é o que parece, e os suspiros de hoje podem se transformar em processo judicial amanhã. Na dúvida, não ultrapasse, e que isso não seja por medo do processo judicial, mas por respeito ao mundo civilizado.

 

Cenário 3: Luto

 

Como o assunto é sério e delicado, temos que tratá-lo com a leveza necessária para compreendê-lo sem concordar com o protagonista da história. Vale até mesmo desviar o foco da questão.

 

Vamos reler Cervantes. Encontra-se no livro Dom Quixote uma história que ilustra este cenário. Vou resumir.

 

Em um povoado da Espanha, há séculos atrás, havia uma moça chamada Marcela, cuja beleza extraordinária deixava a população masculina extasiada de amores por ela. Ela, porém, não cedia a nenhum cortejo, mantendo sua fama de recatada e boa moça, feliz com sua solidão.

 

Um dos muitos apaixonados por Marcela era Crisóstomo, que, após muitas lamúrias e cantos de amor, declarou-se e não foi correspondido. Então, escreveu o último poema de desespero e pôs fim à vida.

 

Nesse ponto entra Dom Quixote na história. Amigos do falecido Crisóstomo estão indo por uma estrada, para o enterro, e segue-os Dom Quixote. Já à beira da sepultura, a lembrança de Marcela é evocada, e sua fama de bondade é substituída pela pecha de cruel, um pouco arrogante e desdenhosa, qualificação essa suficiente para ter levado Crisóstomo à morte. Em conclusão, Marcela lhes parecia a culpada.

 

Eis que aparece Marcela no alto de uma rocha, de frente aos seus acusadores. Imediatamente um entre os mais exaltados acusa-a de cruel, arrogante, portadora de má índole, compara-a a Nero diante do incêndio de Roma, e faz outros ataques mais.

 

Marcela se defende. Cervantes dedica mais de uma página de seu livro a essa fala de Marcela. Diz ela:

 

“ (...) venho só a defender-me, e mostrar quão fora de razão andam todos os que me culpam do que penam, e da morte de Crisóstomo.”

“Com o natural entendimento que Deus me deu, conheço que toda formosura é amável; mas não entendo que em razão de ser amada, seja obrigada a amar (...).

“Eu nasci livre; e para poder viver livre escolhi as soledades dos campos;(...)”

 

Terminada sua defesa, Marcela vai sozinha pelos campos. Aspas para o que se segue:

 

“Alguns dos feridos com as setas dos seus belos olhos pareceram querer segui-la, sem entender o formal desengano que tinham ouvido”.

 

Nesse momento entra em ação o grande Dom Quixote de la Mancha, em um de seus mais memoráveis momentos. Empunhando a espada diz em alta voz:

 

“Que nenhuma pessoa, de qualquer estado e condição que seja, se atreva a seguir a gentil Marcela, sob pena de cair na fúria da minha indignação. Já ela mostrou, com razões claras, a pouca ou nenhuma culpa que teve na morte de Crisóstomo, (...)”

 

É interessante notar, nessa história, o quanto Dom Quixote está lúcido, no meio de tantos... menos lúcidos.

 

Cenário 4 – Atos incompreensíveis

 

Em um cenário agitado, sujeito a chuvas e trovoadas, noites escuras e pistas escorregadias, é bom lembrar da recomendação para o trânsito seguro: Não corra, não mate, não morra.

 

Aos que dizem matar por amor só restam dois caminhos, a camisa de força ou a prisão de segurança máxima, o que melhor se aplicar ao caso.

 

Pensei em terminar esta crônica com estatísticas de relacionamentos conflituosos. Aqueles que terminam em tragédia, quando a separação se torna inevitável. Especialmente refiro-me a homens que pensam ter sobre uma mulher o direito de posse, com se ela fosse seu objeto de estimação. Não compreendem que o direito à liberdade é inalienável.

 

Pensei, sim, nas estatísticas e nas manchetes frequentes do noticiário policial, mas aqui não vou recordá-las. São muito tristes. Só me restou ânimo para escrever a conhecida frase: Quem ama não mata.