Hoje deu ruim, Professor! Parece que errei as dez...

Quarta-feira era dia de Superação.

O educador precisava saber o quanto o pessoal tava aprendendo do conteúdo que vinha sendo trabalhado. Mas, vamo combinar, prova no formato tradicional, em projeto social, ninguém merece...

Se um dos princípios era justamente não repetir o ambiente escolar no Projeto, obrigar os adolescentes a fazer prova seria uma enorme contradição.

O negócio então foi se virar nos trinta pra poder avaliar o aprendizado seguindo o mesmo critério adotado pra desenvolver as temáticas: despertando e segurando o interesse da galera.

A solução foi maquiar a prova, mesclando abordagem direta do assunto trabalhado durante a semana, música, esporte, atualidades, entretenimento e atividades lúdicas, aproveitando pra embutir disciplinas escolares em doses homeopáticas.

Além de verificar o aprendizado, a avaliação também acabou servindo como mais uma oportunidade pros “sem-luz” apertarem o interruptor do conhecimento...

Opa, parou!

É necessário um aparte pra desmistificar a lenda etimológica de que a palavra aluno significa “desprovido de luz”, do latim (a=sem + luno, derivado de lumni=luz).

Passa bem longe. E configura distorção pejorativa, pois verticaliza a relação mestre-discípulo, negando a possibilidade de que o aluno também tenha algo a ensinar ao professor, que estaria sempre em posição de superioridade, a lâmpada inatingível, que lá do alto alumia o caminho dos que estão perdidos nas trevas da ignorância.

Na verdade, aluno vem sim do latim, mas de alumnus=criança de peito, lactente e o verbo ao qual se vincula é alere, que significa nutrir, alimentar, fazer aumentar.

Nessa mesma vibe, temos o Educador, oriundo de educatore, aquele que cria, que nutre, que sustenta. Daí se conclui que a educação deve abranger todos os aspectos do aluno: físicos, cognitivos e emocionais.

Olha o tamanho da responsa: o Educador não pode se considerar o dono do conhecimento e, menos ainda, se limitar a repassar conteúdos aos alunos, devendo capacitá-los para aprenderem de forma incessante ao longo da vida. Tem que transcender!

Como dizia um tal de Einstein: "A educação é aquilo que fica depois que se esquece o que foi ensinado e o que foi aprendido."

Agora sim né? Bem mais condizente com a nobreza da pedagogia, essa do grego (paidós=criança + agogô=condutor), cuja origem também aponta para a necessidade do exercício da humildade, pois constituía atividade de responsabilidade do escravo, a quem cabia a formação intelectual e cultural dos filhos de seu senhor.

Efetivada a devida reparação, cada qual no seu devido lugar – lado ao lado com o outro, bora voltar pras viagens do Educador.

A "competição" era realizada em duplas, definidas por sorteio, com possibilidade de consulta às anotações registradas no caderno de cada um durante as atividades. E mais, também não havia proibição de trocas de informações com outras duplas, desde que todos estivessem de acordo.

A parte "séria" da avaliação - chamada “Quem sabe, sabe...” - tinha dez questões, valendo dois pontos cada. Eram cinco perguntas discursivas sobre o tema trabalhado, três de múltipla escolha - uma de gramática, uma de matemática e uma de ciências da natureza - e as duas restantes sobre as notícias da semana. Isso mesmo, assistir jornal, ouvir no rádio.

Depois, uma pergunta isolada, de grau de dificuldade mais elevado, focada no tópico mais relevante do tema desenvolvido, valendo cinco pontos: “O Enigma da Esfinge”.

Em seguida, começava a etapa mais maneira: a “Cultural”. Eram cinco perguntas, geralmente de múltipla escolha, sobre quadrinhos, televisão, esporte, música, cinema, tudo junto e misturado com história e geografia pra aproveitar o embalo, conhecimentos gerais e até informações inúteis, aquelas que a gente adora responder só pra mostrar que sabe e nunca usa pra nada.

E aí, um toque de Sílvio Santos: “Qual é a música?”. Nada de novo debaixo do sol. O Educador tocava a música naquele moderníssimo rádio toca-fitas com CD Player modelo 2004, o pessoal precisava escrever quem estava cantando e, mais adiante, quando a canção era interrompida, adivinha só! Isso mesmo: escrever a continuação – o manjadíssimo “Para e Continua”.

Tá de zoeira que os “mano” e as “mina” curtiam essas naftalinas, né? E quem não gosta? Todo mundo diz que é uma breguice, mas é só começar a brincar e já era.

Pra quem chegasse do nada e parasse na porta da sala, a impressão seria a de que tava todo mundo sem fazer nada.

- Mas o que é que esse Educador tá trabalhando com esses meninos? Bota música e deixa o tempo passar. Assim é fácil. Se diverte e ainda recebe da Prefeitura. Queria um serviço desse...

Pior que nem brincadeira era. Exercício de atenção e memória pra identificar o artista e o trecho da música. Ouvir e escrever. Ritmo. Melodia. Até raciocínio lógico-matemático. Muita coisa séria envolvida.

Por último, a esperada “Recreativa”. O famoso gincanão. Toda semana uma categoria inédita: fazer cesta com bola de meia no balde emprestado pela Dona Arminda, a Serviços-Gerais; acertar a quantidade de água, em mililitros, em variados recipientes; campo minado, no quadro negro – um plano cartesiano em que as combinações das coordenadas formadas por letras e números correspondiam a valores de pontuação ou a “bombas” que zeravam os pontos acumulados; jogos de tabuleiro adaptados: Banco Imobiliário, War, Leilão de Arte; Disputa de pênaltis de futebol de botão; Uno.

E tudo mais, criação própria ou não, desde que tivesse como principal elemento o dinamismo, com reviravoltas sucessivas e desdobramentos inusitados, que mantivessem a incerteza do resultado até o último lance.

A parada valia vinte pontos pra dupla vencedora, quinze pro segundo lugar, doze pro terceiro, dez pro quarto e assim por diante.

Terminada a competição, o Educador corrigia a parte escrita. A pontuação de cada dupla passava a ser referência mínima para a prova da semana seguinte. Era a marca a ser superada. Conseguiram 40 pontos, parabéns! Mas não acumularão os quarenta. Na próxima, se alcançarem 45, terão cinco positivos. Se fizerem só 30, o saldo ficará negativo em dez.

Só que as duplas eram alteradas toda semana. Então, a meta passava a ser individual. O cidadão não competia pra ganhar dos outros. O adversário a ser batido era ele próprio. Daí o nome “Superação”. Por si, esse conceito já afastava a projeção do outro como o inimigo que precisa ser derrotado para que o vencedor seja eu.

Mas a ideia essencial era contemplar a equidade. Adolescentes de 12 e 15 anos não podiam ser medidos pela mesma régua. O método do eu contra mim mesmo foi a solução pra equilibrar a disputa e acabou resultando numa avaliação bem mais fidedigna da evolução do pessoal.

Bom, tudo isso pra contextualizar a história do dia em que aconteceu o que todo mundo esperava tão ansiosamente que acontecesse, mas que ninguém imaginava que aconteceria da maneira que aconteceu.

Por mais incrível que possa parecer, uma das provas que despertou o maior interesse dos adolescentes foi a de Ortografia: dez palavras, valendo um ponto cada acerto. O educador sempre escolhia metade das palavras relativamente fáceis, três palavras mais complicadas e duas bem difíceis, aquelas das mais excêntricas mesmo.

Com o tempo, a ortografia acabou virando um desafio, que eles passaram a chamar de missão impossível, porque ninguém conseguia gabaritar. Poucas vezes alguém batia oito acertos e, muito raramente, nove.

Um dos que dava na trave com certa frequência era o Dom. Mas não tinha segredo ou fórmula mágica pra ter bom desempenho. O menino gostava de ler. Quem lê bastante, escreve bem. Simples assim. Nunca acertava menos de seis.

Tinha mais gente que também se destacava – Witney e o Presidente, que são irmãos, sempre pontuavam alto, Katrina e Alícia mandavam muito bem, o Tá Ligado devorava o dicionário pra se preparar melhor e todo mundo, à medida que conseguia acertar mais, sentia que tava chegando cada vez mais perto, mas a maior expectativa da turma pra cravar as dez era o Dom mesmo...

Até que um belo dia veio a surpresa:

- Hoje deu ruim, Professor! Parece que errei as dez...

E o cara errou todas mesmo. Estranho demais, mas quando o educador começou a verificar as palavras, percebeu que o rapaz tava de sacanagem.

Escreveu eskarceu, parrabolla, cyrcuyto, rapidex, acentuou o que não devia, não acentuou o que precisava. Errou todas de forma bizonha. Totalmente fora da curva.

No dia seguinte, o educador fazia a correção das palavras. Devolvia as provas pros adolescentes confirmarem os acertos e erros e escreverem todas no caderno novamente, pra fixar bem.

Quando o Dom viu sua prova, levantou imediatamente.

- Ué, Professor! Pirou? Fiz dez pontos na ortografia. Mas errei todas. Tá aqui ó, todas com x, de errado, o senhor mesmo que anotou.

- É isso mesmo, Dom. Sua nota tá certa. Dez pontos. E é verdade, você errou todas. Mas errou por querer, querendo. E se errou de propósito, sabia como escrever corretamente. Olha só como você escreveu: dessibeu, cazamento, inwalidassao.

- Mas, Professor!

- Bizarro demais, meu querido! Pelos erros, entendi que você dominava a grafia de cada uma. Então seu dez é merecido. Parabéns!

- Fala sério, Professor! Nem boto uma fé...

- E vocês todos, ouçam bem: nas próximas, não adianta virem com conversinha de que erraram de caso pensado pra fazer os dez pontos! Conheço cada um de vocês muito bem. E vale pro senhor também, Dom! Querendo ou não, de agora em diante, se errar todas é zero!

O Dom e o Educador mantem contato até hoje. Trocam ideia no zap de vez em quando. Em junho, o Dom fez 29. O Educador mandou um rascunho dessa história pra ele, de presente.

Ele escreveu que se sentia lisonjeado. Olha a palavra que o cara usou, vocabulário refinado, grafia perfeita!

O Educador se sentiu mais ainda. Feliz demais por ter tido a oportunidade de se dedicar à excelsa e apaixonante arte de ensinar, do latim insignare (in=em + signum=marca, sinal).

Colocar sinal, deixar marca em, gravar! Tatuar na mente e no coração!