Google Traidor
Em 1979, pedi ao escritor colombiano Hernando Cardona para traduzir uma crônica para o espanhol, Queria atingir a numerosa colônia de exilados sul-americanos em Copenhague e Estocolmo. Hernando era uma das vitimas da intolerância da Guerra Fria e se abrigava sob o manto das avançadas democracias nórdicas. Dinamarca, Suécia e Noruega amparavam tanto chilenos fugindo de Pinochet, quanto poloneses escapando das unhas do Kremlin. Pode, Arnaldo?
A crônica em questão era "Futuro Assegurado" e fazia parte da minha série “Copenhague Zero Grau”. Descrevia o dia a dia de uma jovem mãe solteira e sua filha, uma criança de uns 10 anos, inseridas naquela sociedade do bem-estar. Hernando fez uma ótima tradução, evidentemente sem o apoio do Google Tradutor, que só começou a dar as caras em 2006, limitado às traduções inglês/árabe e vice-versa, conforme a Wikipedia. A propósito, a partir de novembro de 2016, o Google Tradutor passaria a usar uma rede de inteligência artificial, abandona o critério estatístico e traduz sentenças inteiras ao invés de palavras isoladas. A evolução é evidente, uma maravilha da tecnologia, porém ainda ocorrem erros bastante cômicos, como verão. Mas voltemos ao ambicioso brasileiro que deseja publicar em espanhol.
Recentemente, lembrei-me dessa interação com o escritor colombiano e achei que era hora de expandir meu raio de ação literário para além das fronteiras do português. Comecei a cozinhar a ideia de usar o Google Tradutor para iniciar o processo e eu iria aparar as arestas da tradução num segundo momento. Mais ou menos isso: iria ser o revisor da tradução virtual. Estava convicto de que esse expediente iria acelerar minha entrada no mundo de Cervantes. Enquanto acariciava essa ideia, um acaso veio mostrar que o buraco era mais embaixo. Tinha enviado uma crônica em português para o amigo Miguel Irala, músico e odontólogo paraguaio formado no Brasil, bom conhecedor de português e espanhol. Irala se interessou pelo texto e, para tirar algumas dúvidas, fez uso do Google Tradutor e me enviou o resultado sem retoques.
Eu estava curioso para ver meu texto em espanhol, mas logo me decepcionei. No início da tradução "googliana", o pássaro "joão-de-barro" virou " juan de arcilla", tradução literal. No Paraguai, o simpático joão-de-barro é chamado de "hornero" ou " alonsito." "Hornero", porque sua casinha parece um forno ("horno") de barro e "alonsito", diminutivo do nome Alonso, se relaciona a sua legendária fama de machão ciumento. Não consegui saber por que Alonso e não qualquer outro nome masculino, mas é assim. Depois disso, coloquei no modo de espera a ideia de aproveitar o Google para traduzir meus textos para o espanhol.
Outro exemplo das falhas desse software apareceu há poucos meses num portal de notícias de Foz do Iguaçu. A matéria analisava as obras da rodovia PY02, estrada que liga Ciudad del Este a Assunção, e se referia ao trecho urbano central, próximo à fronteira com o Brasil. Por ali, região de incontrolável crescimento demográfico, as ruas não têm nome e todos se localizam por dois rios afluentes do Paraná: ou você está do lado Acaray ou do lado Monday, em relação à citada rodovia. O texto espanhol, certamente, foi enviado ao Google e traduzido para o português sem qualquer revisão. Tudo ia bem, até que entra a questão da localização e o afoito Google "Traidor" parece que voltou a 2006, quando traduzia primeiro para o inglês e depois para o idioma de destino. Deve ter tido uma recaída: traduziu Monday (pronúncia "mondaí"), nome do rio, como "Segunda-Feira". A tradução virou salada linguística de espanhol, português, inglês e guarani e o pobre rio Monday deixou de ser "rio traiçoeiro" e virou "segunda-feira".
Equívocos de tradução, porém, não se limitam à internet. Antes do Google, o livro "Uma breve história do tempo”, de Stephen W. Hawking, edição brasileira da Rocco, ano 2000, mostra um erro na tradução de um falso cognato. Pelo menos por quatro vezes, “eventually” foi traduzido por "eventualmente", quando o correto seria "finalmente". Cochilos da tradutora?
De qualquer maneira, chega de crucificar o "Traidor", porque gostei muito do trecho em espanhol da tradução que Miguel Irala me enviou: "Me despierto con el canto alentador del hornero. Un día extra también es un día menos, pero el sol brilla y necesitas coro con estos pájaros felices. Desde la ventana del apartamento, los veo rascando en la calle, confiados en la vida, en la fidelidad matrimonial y en sus dotes de arquitectos y albañiles. Como las otras aves, caminan tranquilamente por las ciudades, confiando en las leyes ambientales. "
Como veem, substituí por "hornero" o "juan de arcilla" do Google e curti a amostra enviada. A tradução tem até um ritmo gostoso, soa bem em espanhol. Entusiasmado, imaginei como seria lançar meus livros em Montevidéu, Buenos Aires, Madri e Barcelona. Adorei a ideia. Sabedor das possíveis falhas, porém com os devidos cuidados, a empreitada poderá tornar-se viável . Cervantes e Camões terão de entrar num acordo.