A raspa de arroz e o pescoço de galinha!
A vó tava falando pra netinha do seu tempo de menina, até a 4 série estudou, depois foi-se ter com o trabalho pra ter direito as coisinhas de meninice da sua época, seu pai um bom matuto que agora vivia do trabalho na indústria, no fim do mês sempre contava as prestações que faltava para pagar a casinha que com muito suor garantia o aconchego de toda a família, eram três meninos e duas meninas que se amontoavam num único quarto todas as noites onde dormiam e eram acalentados pelo amor daquele casal cheio de bondade e cuidado.
Lembrou do tempo que atravessava a linha do trem pra levar a marmita de uma senhorinha, todos os dias os braços finos daquela pequena menina ficavam marcados das marmitas de alumínio que levava da Casa de sua patroa para a da senhorinha que ao pegar na porta de casa, mandava ela sentar na calçada pra esperar terminar a refeição e retornar com as vasilhas vazias, com a missão cumprida a pequena menina voltava para a Casa da patroa cantarolando cantigas de sua geração.
Na Casa, sua missão era a limpeza do banheiro e mesa de refeição, só almoçava no retorno das marmitas e a patroa logo indicava o local que ela devia comer, fora da casa, próximo a piscina da família, ali seu prato cheio com raspa de arroz e um pescoço de galinha!
Assim ela seguia sua missão, nem dez anos tinha completado e já vivia a luta diária do trabalho e assistia bem de pertinho as desigualdades sociais do nosso país!
Teve sorte, afinal conseguiu crescer num bairro abastado, conviveu com famílias tradicionais e serviço nunca lhe faltou, mas ficou muito longe das oportunidades das meninas da região que tinham sua idade, enquanto ela recebia alguns trocados para o serviço da marmita, certamente outra menina descansava tranquila aguardando o horário do próximo estudo.
Não se tem dúvida que no futuro tudo isso faria muita diferença, hoje conta feliz para sua netinha, com ar saudoso, pois apesar de não ter tido a vida abastada das suas amigas de bairro, teve boa educação familiar e oportunidade de ganhar seus trocados, mesmo que isso tenha custado sua formação em tempo normal, entre outras coisas!
Anos mais tarde conclui os estudos, conciliando obviamente com o tempo de trabalho!
Para sua neta deixa sempre que pode o conhecimento e a experiência, com maior sorte de vê-la estudar nas melhores escolas da cidade, só faz questão que ela entenda sobre as desigualdades existentes e que se há ainda grandes famílias tradicionais e abastadas é porque certamente há meninas e meninos comendo raspa de arroz e pescoço de galinha e essas famílias vão cada vez mais se abastando e sendo bem quista na cidade, porque ao final ninguém liga de verdade para a desigualdade, as pessoas olham as famílias abastadas e veem suas belezas e as belezas de suas casas e carros, a bela educação de seus filhos e admiram simplesmente, sem pensar que na maioria dessas famílias possuem em seus histórico enriquecimento com trabalho escravo e trabalho infantil!
Os meninos e meninas não reclamam da raspa de arroz, agradecem e seguem a vida!
Para a neta o único desejo da vó é que ela tenha mais sorte, se torne no futuro uma família abastada, mas sem jamais esquecer da sua história e para quem sabe um dia quebrar o ciclo e quando este dia chegar, que sua netinha seja benevolente, pois conheceu em sua raiz o significado de desigualdade social e não tenha a mancha do trabalho infantil e escravo em sua família!
A lembrança dos biso matuto segue viva para que a família siga e ao se abastar-se, as mãos calejadas que colocaram os primeiros tijolinhos descansem finalmente com a sensação de dever cumprido!