PELA CALÇADA, O TEATRO DAS VIDAS EM ANTÍTESE

Já faz um tempo que eu pensei em transcrever o que vi e senti naquela manhã.

Ali, há pouco, as margens daquela calçada delineavam um viçoso e biodiverso espaço verde, onde as manhãs explodiam luminosidade , sonoplastia e beleza, em meio à passarada urbana que ali chegava para celebrar a vida em genuína liberdade.

Eu , então, encerava as rodas dos pés e lá fazia meu "cooper" diário, em derredor do quarteirão arborizado, algo tão belo e gratuito que me enchia de prazer.

Entre um descanso e outro, sacava belas fotos das íntimas cenas da Natureza.

Mas, pelas cidades grandes, nenhum canto de verde dura muito tempo.

As betoneiras do "boom" da construção civil, em especial de galpões para logística e comércio, devoram o que cresceu em séculos em apenas alguns minutos.

Assim, naquela manhã, eu parei na "minha" calçada para observar o pequeno centro comercial que ali se formara depois da construção de vários galpões sequenciais.

Eu me recordo que, durante a obra, certa vez parei para conversar com o maquinista da terraplanagem que derrubava umas árvores enormes: " bom dia, o senhor não sente dor no coração?" perguntei a ele.

"Dor? Uai, por que dona?" me respondeu ele.

Senti que a conversa havia sido amputada ali mesmo, juntamente com as árvores que tombavam, portanto , não seria exitoso tentar prossegui-la.

Assim, certo dia, enquanto eu lembrava, também constatava as várias lojas que hoje coexistem ali: "atendimentos a pets", farmácias, "rotisseries", vestuário, perfumaria, enfim, um centro de conveniências sem nem de longe demonstrar o tamanho do verde que há pouco vivia mas já tombara por ali.

Foi exatamente naquele local, durante uma caminhada pela calçada, que pude ver os dois personagens da minha crônica, em cenas coincidentemente sequenciais, em chocante antítese de vidas, o que faria o mais insensível ser parar para ao menos se perguntar " por que", exatamente o " por que" do trabalhador que me perguntou sobre o porquê dos meus porquês.

Ato um: A primeira personagem, uma mulher toda elegante, que mais lembrava uma princesa dos contos das fadas, desceu duma "SUV' inglesa, a cuidadosamente colocar seus saltos no chão, depois que gentilmente sua passagem foi desobstruída pelo gentil motorista e totalmente protegida pelos seguranças do estabelecimento.

Andava com a precisão de quem pisa em ovos, balançando a seda pura do seu vestuário impecável, deixando no ar um aroma de notas delicadas dum perfume dos castelos. Os cabelos pareciam os da Rapunzel.

Com muita discrição, sumiu rapidamente para dentro dum estabelecimento onde se lia "COIFFURE", com a mesma rapidez com que o seu automóvel desapareceu para dentro do estacionamento .

O segundo, ato continuo, um homem em situação de rua, maltrapilho, magro e descalço, trinta e poucos anos talvez, margeava o asfalto da mesma calçada, a puxar pelo meio fio sua carroça barulhenta e desengonçada, ziguezagueando seu caminhar, a me dar a sensação de que havia entornado litros de aguardente para poder continuar pelo seu destino vassalo.

De soslaio, olhei para dentro da carroça onde, em meio a um forte odor de ureia que me queimava as narinas, havia um cachorrinho desnutrido que vigiava uma criança adormecida.

Sim, ninguém conseguiria honesta e não passionalmente... explicar os tantos porquês.

Ali, em segundos, pude assistir em tempo real, um resumo de todo o cáustico e silencioso teatro da vida em antítese, o que segue sem holofotes, o mais fustigante de toda aquela "minha calçada".

Lugar que sequer poderia ser acalentado pela sinfonia da passarada, tampouco areado e adornado pelas folhas das árvores que outrora ali balançavam, a ao menos nos devolver a esperança no ciclo das chuvas; como se lágrimas descessem dos céus cinzentos pelo milagre de nos hidratar em tempos tão áridos e empedernidos...