Crônicas Médicas - Sobre caminhos e caminhar
Muitas vezes me pergunto até que ponto vai a determinação do homem. São inúmeras as histórias que vemos e ouvimos por aí e ainda assim nos surpreendemos a cada novo conto que chega até nós. Nos últimos dias, foi minha vez de ser tocado por uma dura história de superação: sétimo andar do Hospital Regional de Mato Grosso do Sul, aula de Habilidades Médicas do Quarto Ano e uma linda lição humana de como nunca desistir da vida.
* * *
Era 31 de dezembro de 2021 e os desejos de um novo ano se aproximavam para todo mundo, inclusive para Seu Wagner. Já próximo da casa dos sessenta anos, nunca havia passado um réveillon sem olhar para seus entes queridos e desejar-lhes coisas boas para o ano que se inicia. Mas tudo na vida tem uma primeira vez.
Depois de dois goles de cerveja, em um quente meio dia no interior do estado, a língua começou a enrolar e a perna esquerda deixou de funcionar como devia. Algo não estava certo. Seria um AVC?
Imediatamente correu para o hospital e, antes que pudesse ver, estava sendo encaminhado para a capital. Tão logo chegou, exames foram realizados, líquor foi coletado e o diagnóstico estabelecido: Guillain-Barré. Antes da meia-noite, antes que pudesse desejar feliz ano novo aos amigos e familiares, um tubo mantinha seus pulmões funcionando e os sedativos o colocavam em coma induzido por alguns dias. Aí se iniciava a longa estadia do mais novo residente do Hospital Regional.
Longos seis meses se passaram e o quadro evoluía de forma complicada na UTI do hospital. A doença ascendia das pernas para o tronco e paralisava seu diafragma. Somente as máquinas o mantinham respirando. De uma hora para outra, as mãos também deixavam de funcionar, subindo para os braços, até que, em dado momento, apenas os olhos se mexiam. Seria esse o fim, definhando em um leito hospitalar?
Para não dizer que esteve solitário durante todo esse período, além da equipe médica que cuidava do caso, bactérias de todos os tipos insistiam em se fazer presentes em seu pulmão. Quinze pneumonias o acometeram e seu pulmão direito quase deixou de existir. Mas a vontade de viver não o abandonava.
Com afinco, lutou contra todas as infecções e, ainda que somente os olhos mexessem e os pulmões não funcionassem sem aparelhos, não desistiu. Com muita persistência, reensinou seu pulmão a trabalhar sozinho e, com seis meses e quinze dias, trocou a UTI por um leito na enfermaria.
Com o tempo, além da sensibilidade que jamais desapareceu, os movimentos começavam a retornar. Primeiro o movimento da cabeça e a fala que tentava se articular. Depois, um pouco do tronco. E, mais recentemente, membros superiores e inferiores. Foi nesse momento que nossos caminhos se cruzaram, reativando memórias de conhecidos que passaram pela mesma situação.
Longa foi nossa primeira conversa, junto de outros sete ou oito acadêmicos. Ali, naquele leito de enfermaria, contou a história que transcrevi acima. Ali, pude treinar o exame físico neurológico que estávamos estudando, mas, para muito além disso, com ouvidos atentos, pude aprender sobre a vida e como o fim tangencia cada dia de nossa existência.
Seus braços e pernas mal se moviam. Os músculos, outrora destacados, haviam se atrofiado e os membros tomavam os contornos dos ossos, salientes nas articulações bastante edemaciadas. Os reflexos, assim como a força, mostravam-se abolidos, mas a esperança brilhava no olhar de quem havia sobrevivido ao que muitos diriam ser irreversível.
A mente de jornalista, ativa e curiosa, interessava-se por cada palavra nova e fazia questão de destacar durante a conversa, aquilo que já tinha aprendido naqueles oito meses de internação. O olhar atento, passeava pelos rostos dos estudantes que se espalhavam de pé ao redor do leito, buscando memorizar face por face, ainda que parcialmente encobertas pelas máscaras.
Depois de quase uma hora de conversa, despedimo-nos desejando boa recuperação e eu, sem direito raciocinar, imaginava que naquele momento nossos caminhos tomariam destinos diferentes. Ledo engano.
Duas semanas mais tarde, depois de muito ter aprendido sobre exame físico neurológico ao atender Seu Wagner, eu poderia ter escolhido qualquer outro paciente para realizar um novo exame e conhecer novas histórias, mas algo me chamava de volta para aquele mesmo quarto. E assim o fiz, dessa vez com outros dois acadêmicos que ainda não conheciam aquela história de superação.
Com um sorriso no rosto, Seu Wagner me reconheceu ao entrar naquele quarto como um dos alunos que haviam conversado com ele duas semanas antes. Nada novo trouxe em sua história, mas o exame físico se mostrava muito melhor. Os braços e pernas, antes com pouca mobilidade, mostravam-se, agora, mais ativos. Os reflexos, antes inexistentes, começavam a aparecer, ainda que pouco intensos. As articulações, ainda muito pronunciadas, já se apresentavam sem edema.
Foi bom ver que Seu Wagner estava progredindo, mas foi ainda melhor ouvir sua fala antes de sairmos daquele quarto:
“Vocês, tão jovens, escutem isso. Sejam ousados, façam a diferença. Não tenham medo de tentar e façam aquilo que vocês acharem que deve ser feito, não aquilo que dizem que vocês devem fazer. Não adianta ser apenas mais um.”
Essas palavras, por mais que soassem clichês aos ouvidos de muita gente, serviram para reativar em mim uma sensação que não sei colocar em palavras. Essa fala me tirou do automatismo em que a faculdade havia me colocado. A correria do dia a dia, o acúmulo de funções e a sobrecarga de cobranças tiraram de mim parte daquilo que me fez entrar na medicina, e, ainda que eu tentasse retomar a estrada que trilhei no começo do curso, faltava um gatilho para isso acontecer.
Depois que saí daquela enfermaria, entendi o que me chamava para revisitar Seu Wagner. Não era a curiosidade pelo caso; era a necessidade de recuperar minha essência e deixar de ser somente mais um no curso de medicina. Enquanto espero ver a evolução do quadro e torço para que Seu Wagner volte a caminhar, tento eu retomar os passos que me conduziam por um caminho diferente dos demais.