O pai que não tive

O PAI QUE NÃO TIVE

O que restou não foi o silêncio, mas o som triste de um piano fúnebre. Quando meu pai morreu, senti não apenas a perda de um ente querido, mais a do companheiro e meu melhor amigo. Aprendi tanto com ele que agora sinto obrigação de passar adiante para meus filhos e para quem mais quiser ouvir.

Meu pai me ensinou a andar, agarrou meus braços suspensos pelo ar e arrastou meu corpo, fazendo meus pés sentirem a segurança necessária para os primeiros passos.

Foi ele que não se importou com meu choro quando caí da bicicleta. Calmo e sereno, manteve no rosto o riso perene, apoiou minhas mãos junta às suas e enxugou as lágrimas que insistiam rolar no meu rosto infantil; não reclamou nem deu bronca, apenas me ergueu do solo e insistiu para que continuasse, até aprender, e eu sorri um riso de criança, satisfeito ao me deparar com o orgulho estampado em seu semblante tão logo terminei a primeira volta. Ah, aquele semblante ainda vive na minha memória. Com o punho fechado, tentei sua mesma manobra ao empinar a pandorga; um leve toque para baixo, puxando a linha, primeiro para o horizonte, depois na vertical, com força, dando linha depois e puxando novamente, conduzindo no ar uma guerreira de seda, rabiola e bambu e ele satisfeito ao meu lado.

Quando caí doente, não saiu do lado da minha cama, não despregou os olhos de mim, vigilante, cuidadoso, amoroso. Até hoje sinto suas mãos passeando em meu rosto de um lado para o outro e essa simples lembrança ainda me causa conforto.

Já na adolescência, de repente tudo se transformou, o rosto fervia, a puberdade ganhava espaços a cada palmo do meu corpo. Antes do desespero, ouvi dele palavras que me trouxeram a calma necessária para absorver todas aquelas mudanças.

Nem mesmo na fase rebelde ele deixou de me acompanhar. E o fazia de forma voluntária, sem queixas, por prazer. A primeira namorada gostou mais dele do que de mim e eu não sabia de qual dos dois sentia mais ciúmes.

Achava estranho seu jeito de se vestir: calça jeans surrada e camisa de algodão, mangas curtas e bolsos, exatamente iguais às que hoje uso. Aos domingos jogávamos bola de manhã e à tarde íamos ao Morenão ver o Operário jogar, bem perto da piscina da Universidade Federal onde ele, com total apego e paciência, me ensinou a nadar.

O avanço da idade não lhe retirou a juventude, a vontade de viver. Meu pai sempre foi jovial, tanto que não reparei quando ele começou adoecer. Pra mim era impossível que qualquer doença ousasse enfrenta-lo. Acho que ele também pensava assim.

E agora a casa está escura, um silêncio monstruoso invade as paredes indo de encontro à dor que arde no meu peito. Da última vez que conversamos, não falamos sobre a doença, mas não pude deixar de perceber um riso estranho nos seus olhos, algo de despedida, como se confessasse que o maior temor que sentia não era ir embora, mas me deixar sozinho. E uma força estranha se apossou de mim, não sai mais de perto do seu leito, só queria que ele não sentisse dor.

Ouvi o último suspiro como uma sentença de breve adeus e depois fechei seus olhos pra nunca mais.

O que sinto agora, versos não descrevem: imensa saudade, vazio, dor de solidão e uma lágrima de fogo descendo pela minha face...

Encerro aqui a história que gostaria fosse verdadeira.

Para meu desapontamento, o pai acima descrito não é o meu, já que o destino, na forma de impenetrável mistério, nos separou logo que nasci. Ele ainda vive e nos vemos com pouca freqüência, coisa muito mais de amigos distantes que pai e filho.

Restou-me a lição de como não agir. Tento criar meus filhos para quando eu me transformar em poeira se lembrem de mim com carinho.

Do meu pai, asseguro que não restaram mágoas, revoltas ou traumas, apenas o vazio e o desejo escondido que as coisas fossem diferentes, que ao menos um pouco do acima descrito, tivesse de fato acontecido.

Não foi assim, jamais será, o tempo não volta.

Que pena pai, que pena.

ANDRÉ LUIZ ALVEZ
Enviado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ em 14/08/2022
Reeditado em 14/08/2022
Código do texto: T7582201
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