CARLOS DAFÉ

VIAGENS DE UBER

Nelson Marzullo Tangerini

Quase sempre viajo de Uber – de minha casa para o colégio onde leciono ou do colégio para casa. Viajo, também, de Uber, quando vou ao centro da cidade – do Rio de Janeiro – e de, Uber, volto para o meu “lar doce lar”.

Sou um sujeito conversador e já dialoguei com motoristas amantes do blues, músicos, bolsonaristas, lulistas e desiludidos com os políticos.

Um dia desses, numa segunda-feira, viajei com um fundamentalista cristão que ouvia um programa evangélico (uma pregação raivosa) em volume máximo.

Pedi que abaixasse o som do rádio ou o desligasse. Ou mudasse de estação, porque não sou evangélico. Ele se recusou a abaixar o volume e, com arrogância, revelou-se evangélico e bolsonarista. Talvez porque eu usasse uma camiseta onde se lia a frase: “eu avisei”. E prosseguiu: “- Votei em Bolsonaro e vou votar nele outra vez”!

Tentei dialogar com ele sobre a possibilidade de o presidente não ser cristão, pelo fato de ser armamentista, fazer arminha com a mão, se exibir com armas e, enfim, por ter declarado várias vezes que era a favor da tortura, da volta da ditadura militar e do AI 5. E ainda argumentei sobre a possibilidade de 17 universidades federais fecharem suas portas, depois que o cavalgadura cortou a verba dessas universidades.

Mas ele prosseguiu com seu ódio, notadamente influência das fekenews contra a Educação, dizendo que o presidente havia cortado o dinheiro da farra dos drogados nas universidades. Vendo que ele, por incompetência intelectual, jamais passara pelos bancos de uma universidade – e aí talvez resida a sua frustração -, perguntei-lhe quando acabariam as farras das igrejas evangélicas dirigidas por pastores pilantras e gananciosos, que não trabalham e vivem às custas do dízimo de pessoas simples, humildes, de baixa escolaridade, vítimas da desigualdade social. Enfim, homens de negócios escusos, engravatados, que odeiam a ciência, os intelectuais e os livres pensadores, enquanto se fazem de santos por trás de uma Bíblia.

Depois dessa, calou-se e "enfiou a viola no saco", como diz o velho ditado.

Sem dúvida, esse motorista ganhou apenas uma estrela.

Mas há grandes surpresas, também, no volante do Uber: na semana passada, depois de viajarmos – eu e Verônica, minha esposa -, para o centro do Rio, com um motorista ainda abalado com a morte recente de seu saudoso pai, vítima de câncer, voltamos, de Uber, com um motorista apaixonado por música.

Tão logo entramos, o educado cidadão nos perguntou se a música nos incomodava. Dissemos que não, que ficasse à vontade. E então nos perguntou que músicas gostaríamos de ouvir – porque ele tinha uma vasta lista de nomes de nossa música. De imediato, pensamos em vários nomes. Talvez, Milton, Gil, Djavan, Dafé...

De sua seleta coleção, então, saiu um repertório vasto de Carlos Dafé. Falamos que éramos amigos de Dafé. E ele, empolgado, e igualmente fã do cantor, começou a nos mostrar que tinha várias músicas do “Príncipe do Soul brasileiro”.

Voltamos para nossa modesta residência, tão citada por mim em inúmeras crônicas, com a certeza de que almas nobres e boas, atrás de um volante, ainda podem semear esperanças em nossos corações.

Esse motorista, lógico, ganhou 5 estrelas.

Hoje, 14.8.2022, pela manhã, deixei um recado gravado no zap de nosso amigo Dafé, falando-lhe da grande surpresa que tivemos numa viagem de Uber. E logo veio sua resposta, agradecendo-nos pela lembrança amiga.

“Quero sorrir, quero sorrir”...

Nelson Marzullo Tangerini
Enviado por Nelson Marzullo Tangerini em 14/08/2022
Código do texto: T7581893
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