O laudo
Trecho extraído da obra "Os Manuscritos de Wankan - Livro I: Leydam" cuja aquisição pode ser feita pelo link https://linktr.ee/marcelobaia
Leydam está novamente em cima de sua moto, passando por uma cidade grande. O céu fica opaco, cheio de fumaça. O barulho das buzinas interrompe o canto dos pássaros e até o ronco gostoso e vibrante do motor de Rafaella. Há entulho às margens da rodovia, lixo e sujeira em cada esquina, uma sujeira sem fim.
Ratos reviram os restos de comida. Cães abandonados rasgam e arrastam pela rua as sacolas de plástico. Ele observa as pessoas correndo de um lado para o outro o dia inteiro, a semana inteira, a vida inteira.
Apesar de ser incompreensível a ele porque as pessoas vivem assim, elas parecem não se importar com esse ritmo frenético. Parecem anestesiadas, entorpecidas por alguma droga.
– Se eles tiverem 7 vidas, todas elas serão gastas assim, correndo, como baratas tontas, em busca de status, em busca de dinheiro, em busca de poder, mas sempre dirão que estão em busca da felicidade – observa Leydam –, felicidade que viria com a promoção ou com o salário maior, que viria com o novo carro ou a nova casa.
As baratas transbordam do lixo acumulado nas calçadas dos corações e invadem as ruas da mente. Escravos da mente. Eles correm a vida toda buscando na verdade apenas satisfazer seus egos, satisfazer o apetite insaciável do ego por controle, sempre querendo mais, mais e mais. A busca frenética é inconsciente, as justificativas para a busca são conscientes, um jogo da mente.
Nenhum deles analisa a razão fundamental. – Preciso de uma melhor colocação profissional, preciso de uma estabilidade financeira, preciso me destacar – dizem eles, justificando suas vidas sem sentido, sem propósito, sem controle.
Sem perceber estão sendo controlados pela própria mente, que cria uma ilusão de que precisam fazer isso e evitar aquilo, que isso está certo e aquilo está errado, ‘eu acho isso, eu acho aquilo’, ‘eu penso isso, eu penso aquilo’.
Quem estabeleceu como se deve viver e o que se deve buscar? Quem nos convenceu a sermos escravos? Qual é de verdade a verdade?
Eles não aceitam não estarem no controle absoluto de suas vidas, por isso precisam fantasiar que estão escolhendo o próprio caminho. Criam uma ilusão para fugir da realidade que lhes parece muito dura para aceitarem: não estamos no controle de absolutamente nada, e tudo bem com isso.
Você criou as leis universais, as leis da física, por exemplo? Não! Você pode se sobrepor às leis universais? Também não! Onde está o seu controle? Que poder você teria para escolher como as coisas acontecem? Não tem!
É quando você aceita a sua impotência e se sente bem com isso que as maravilhas da criação se revelam a você. Só assim você será feliz, parando de resistir, parando de lutar.
Por que parar de lutar? Porque você está do lado errado dessa guerra, o lado negativo e destrutivo, o lado que jamais poderá vencer, e lá no fundo você sabe disso, e é por isso que absolutamente nenhuma conquista é capaz de preencher esse vazio no seu peito.
Se entregue!
Se lance!
Confie!
O semáforo fica vermelho interrompendo a marcha e frustrando os planos de Leydam de sair o mais rápido possível daquele lugar. À direita ele vê um enorme prédio de fachada vermelha com grandes vidraças, lhe dando uma aparência imponente e importante. Em frente nenhuma árvore que possa tapar a visão do hall de entrada.
No alto, na cobertura, é possível ver um senhor de uns 57 anos mais ou menos, que passou a vida toda correndo, sem tempo nenhum para viver, simplesmente sobrevivendo, aquecido pela ilusão de que um dia poderia parar para viver.
Em 40 anos ele não se deu descanso, correndo para todo canto. Correu para se formar, correu para se especializar, correu para trabalhar, correu para ser promovido, correu para casar e para ter filhos, correu para conquistar, correu para dominar, e lá de cima do prédio, olhando o movimento frenético dos carros lá em baixo, todos correndo sem saber onde vão chegar ele se sente perdido, completamente vazio.
– Qual o sentido dessa vida? – se pergunta desconsolado, tentando racionalizar e entender o que estava havendo. Em seguida a pergunta mais óbvia do planeta humano: – Por que eu?
Após uma vida inteira se programando para um dia ter a tão sonhada liberdade financeira que lhe possibilitaria simplesmente viver, viajar, conhecer lugares maravilhosos, provar novas culturas, ele agora tem nas mãos os resultados de seus exames anuais: câncer no pâncreas!
Esse pobre indivíduo, cego pela sede de controle, nunca conheceu a verdade: tudo é temporário, tudo é insatisfatório, tudo é impessoal.
No topo do império que passou toda a vida construindo ele se vê agora com a sentença de morte em suas mãos, um convite para o tormento de um baile de terrores.
E se lembrou de quando era uma criança, e de tudo que vivera até ali. Se lembrou de quando resolveu entrar de vez naquela dança, na esperança de ser campeão, alcançando o primeiro lugar. Em profunda desgraça percebeu que tomou o caminho errado na encruzilhada da vida.
– Não posso mais voltar – reconhece ele.
Realizou então que toda a sua vida foi construída em cima de uma ilusão, a ilusão da segurança, do controle, da racionalização.
Se lembrou entre soluços e lágrimas todas as vezes que negou os apelos dos filhos para brincarem no fim de tarde, as vezes que recusou os convites da esposa para namorarem ao pôr do sol.
Ele passou a limpo sua vida e percebeu que a doença que ele agora estava prestes a colher era o fruto da semente de ilusão que ele plantou, regada durante longos anos pela ansiedade e apego à necessidade de controle. Ele não confiou na vida, não se jogou nela com esperança e alegria, ele a tentou manipular, controlar, encaixotar.
– Ainda há esperança? – se pergunta ele.
– Para a doença talvez não – ouve em seu íntimo –, mas para a vida sempre há esperança, sempre há como mudar de direção, mudar de atitudes, mudar o resultado.
Agora ele buscará com todas as suas forças convencer a família de sua nova descoberta, das coisas que são realmente importantes na vida, chamá-los à razão. Será que o escutarão?