De frente para o perigo

Trecho extraído da obra "Os Manuscritos de Wankan - Livro I: Leydam" cuja aquisição pode ser feita pelo link https://linktr.ee/marcelobaia

Se todas as minhocas do mundo fossem eliminadas agora, o que você acha que aconteceria? Em pouco tempo as plantas não existiriam, não haveria alimento, nem para nós nem para os animais, e todos morreriam, inclusive nós. A Terra ficaria desolada.

Sem plantas ou animais o solo logo se tornaria areia, os ventos soprariam essa areia por toda parte, até que fosse ela depositada no fundo dos rios e dos mares. Isso iria agora comprometer o equilíbrio aquático, e teríamos também aqui catástrofe. Não sobraria nada na Terra senão um planeta infértil e seco.

E se os insetos fossem exterminados da Terra, o que aconteceria? Em pouco tempo não haveria igualmente comida, e todos morreriam, inclusive nós. Novamente a Terra estaria desolada.

E se os homens fossem exterminados da face da Terra, o que aconteceria? Sem o homem para destruir, desmatar e poluir, a natureza floresceria, as árvores voltariam a crescer, os animais se multiplicariam, e o equilíbrio voltaria ao planeta em alguns anos. Percebe?

O ser humano não é superior aos demais seres, ao contrário, é o mais nocivo e destrutivo inquilino da Terra, o tipo de verme para o qual ela não está encontrando vermífugo eficaz. Somos o vírus para o qual ainda não foi inventado um antibiótico adequado – por enquanto.

O homem é o único ser vivo em desequilíbrio no planeta, o único que se recusa a adaptar-se, a ceder, a fazer concessões, ele quer e quer agora, e quer do seu jeito, custe o que custar. Todos os demais seres vivem em harmonia com a natureza, cada qual cumprindo sua função para tornar a Terra ainda mais maravilhosa e encantadora. Somos seres hostis no planeta.

Em apenas um critério ganhamos ‘de lavada’ de todos os demais animais: arrogância. É nosso ego quem cria a falsa ilusão de que somos especiais, e por isso precisamos nos apegar àquilo que julgamos importante para nós. Como alguns dizem: – ‘nós merecemos isso’.

É o nosso ego quem recebe cada infortúnio como um ataque pessoal contra sua existência. O universo vibra, cintila, interage, se transforma, o tempo todo. A individualização é ilusória e transitória. Não existe um você, não existe uma onça, não existe um planeta Terra, só existe o TODO.

É como um polvo. O polvo é um animal magnífico e o mais alienígena da Terra. Ele tem 8 braços, e cada braço possui um cérebro. O animal tem 9 cérebros. Cada braço é lotado de ventosas que não apenas agarram objetos, mas sentem o seu gosto.

Assim podemos dizer que cada braço é um ser independente, que pensa por si mesmo, tateia e degusta. Como o polvo tem um sistema inteligente de camuflagem, por uma espécie de células espelho, os braços não dependem da intervenção do cérebro central, na cabeça, para se camuflarem também.

Somos como braços do polvo, cada um de nós, dos animais, das plantas, dos planetas, dos sóis. Um polvo com infinitos braços, independentes entre eles, e ainda assim ligados entre si pela cabeça, o todo.

Tudo, o universo inteiro, todos os universos, tudo o que existe, o Todo. É só isso que é real, essa onda de amor que vibra desde os primórdios, e de onde se originou todas as coisas. Todos os demais aspectos são construções temporárias que existem unicamente para cumprir o propósito de melhorar a nossa experienciação particular que aproveita ao todo.

Não é para ser eterno, não é para ser perfeito, não é para ser satisfatório, não é para ser pessoal. A ideia é simplesmente interagir e mudar constantemente, agregando experiência.

Leydam contempla a exuberante beleza do animal, sua força e energia, sua presença. Esplêndido ser! Ao lado do animal agora nota a presença de 2 filhotes. Era uma mãe defendendo a prole. Ele realiza que as ‘qualidades’ humanas ali não tinham nenhum valor.

Aquela mãe zelosa o tomava como uma ameaça, e estava pronta a dar a vida pelos filhotes. Absolutamente nada que ele fizesse ou falasse poderia convencê-la do contrário, era um invasor ameaçando seus pequeninos filhos.

Todo o intelecto era completamente impotente para encontrar uma solução racional para a situação. Pelo menos uma solução que não terminasse com Leydam dentro do estômago dessa família ‘fofinha’ de felinos que depois da refeição se lamberiam.

Diante do resultado inevitável o viajante finalmente se rendeu. Ele se sentou ali no meio da mata com suas pernas cruzadas, postou as mãos sobre o colo e chorou como uma criança. Deixou rolar as lágrimas abundantemente, mirando aquela linda dama nos olhos, aqueles olhos castanhos, amarelados, com tons de laranja.

Ele estava pronto para partir, lamentando apenas não ter tido a oportunidade de balançar um filho no colo. Olhar naqueles pequeninos olhos, fitando aquele sorriso tranquilo que escapa no canto de seus lábios.

–Acho que não conseguiria ser um pai tão bom como foi o meu – pondera ele.

Ele se coloca humildemente em pé de igualdade com aquele animal maravilhoso. 2 seres, 2 existências, 2 experiências, um de fronte ao outro, ao acaso confrontados.

– Se uma das existências precisa ser encerrada que seja a minha, pois estou em paz comigo mesmo – decidiu.

A vida é passageira, mais cedo ou mais tarde essa aventura chega mesmo ao fim. Não faz sentido se apegar a ela. E de onde vem a insatisfação? De exigirmos que as coisas se passem exatamente como, quando e onde queremos, da necessidade de racionalizar tudo, de achar explicação para tudo, de calcular tudo matematicamente, e decidir como o resto do universo inteiro, precisa se comportar para que tenhamos exatamente o que queremos.

Nos revoltamos como crianças birrentas quando o universo todo não se alinha para que as coisas aconteçam nos nossos termos. Como se toda a criação estivesse a nosso serviço. Os humanos são mesmo muito arrogantes.

– E prepotentes – sussurra a mata.

Talvez isso se deva à crença de que somos a coroa da criação, que Deus tenha criado o mundo e nos colocado para governá-lo. Após milhares de anos, olhe o quanto a ciência evoluiu. Ficou claro e notório que o planeta Terra não é o ‘mundo’ inteiro, mas apenas uma pequenina parte dele. Somos um nada com consciência, um cisco pensante.

Na maioria das vezes as coisas não serão como queremos, e é daí que vem a frustração. A frustração é a tentativa da mente em racionalizar as situações para manter a ilusão de que podemos controlar as circunstâncias, e se dessa vez isso não ocorreu, por certo fizemos algo errado, alguém nos atrapalhou, ou há forças contrárias a nós, e por aí vai.

Tudo menos aceitar a verdade: não se trata de nós, individualmente, mas do todo, e no conjunto, o todo, tudo está perfeitamente onde deveria estar, e está acontecendo como deveria acontecer. Esse é exatamente o fluir do universo.

– O mundo não gira em torno do seu umbigo, Leydam – dizia sempre Isaura.

Todo o conhecimento que temos hoje desmentem em grande parte diversas mentiras que nos foi contada por milênios. Isso não é suficiente para acordarmos?

Tímidos raios de Sol se aventuravam a tocar o chão frio e úmido da floresta. O vento correu baixo, rolando algumas folhas secas ali depositadas.

– Não é nada pessoal – entendeu Leydam finalmente – é só a vida seguindo seu curso, fluindo, se transformando à medida que interage consigo mesma.

Somos uma parte dessa vida. Nada deixa de existir, apenas muda de forma, muda a forma de existir, muda a forma de interagir, para ter novas e diferentes experiências.

E ali ficou ele, sentado, completamente em paz, completamente indiferente, completamente satisfeito. Não se sabe quanto tempo ficou ali, pois o tempo deixou de existir.

Ele apenas estava ali, independentemente de tempo, enquanto ainda estivesse ali. Então o estar também deixou de ser importante, e sem o onde e o quando, só sobrou o quem.