Romaria de Padre Cícero segue até esta quarta relembrando 88 anos da morte  do sacerdote, em Juazeiro do Norte                  Capítulo (?)

 

 

 

A seca de 32, não foi culpada sozinha

Porque desde 27, que ano bom já não vinha.

— Cantilena nordestina da década de 30 —

 

 

O céu rendilhado de estrelas assemelhava-se à cauda de uma veste de noiva, bordada por mãos de fada. A bicharada, de hábitos noturnos, passeia.

Faltam três horas para a meia-noite.

O relógio não para de entoar seu tic-tac. Tic-tac. Tic-tac. Tic-tac...

Tunico Oliveira se despede e sai.

 Demais camaradas também se vão.

 Pouco depois, os meninos que brincavam de cabra cega na calçada, agora dormem a sono solto.

Despertada a aurora, o dia amanhece no topo da serra, e vai dourando de luz o capinzal. O dono da fazenda matutava: “A estiagem de 36 supera em perdas a seca de 32.”

Passou setembro, veio outubro, novembro, e a chuva não veio.

Era dia de natal.

Eusébia de João Velho foi à varanda atraída pelo vozerio que ouvia.

– Venha ver, senhora!  O terreiro está coalhado de gente!

– É o povo chegando para a procissão. Abata três galinhas e dois frangos. Faça um tacho de arroz com pequi, disse Corina.

– E feijão?

– Pobre não gosta de feijão. Faça pirão, maxixe e quiabo. Cozinhe um caldeirão de nabo. Saco vazio não segura em pé.

 Eusébia resmunga.

– Fazer comida para tanta gente é serviço demais para uma pessoa só.

A patroa antecipou-se.

– Nhá Santa... Nhá Santa...

– Espere, estou rezando...

A cozinha se movimenta.

Cuidadosamente, Eusébia retira a penugem dos frangos. Corina cuida do maxixe. Nhá Santa lava o quiabo picado, e põe limão. A panela baba. A chaminé respira cheiro de sementinha de coentro verde com alho e sal socados no pilão.

Pronta a refeição. Nhá põe mesa.

Doze cadeiras acomodam os comensais. Depois mais doze pessoas se sentam à mesa. Mais doze, enfim, todos se fartam.

Os meninos comem na cozinha, e os grandes que são cria da casa, sentados no chão, recebem a boia em prato esmaltado.

É hora da procissão. 

Peregrinos tomam a estrada. E se vão. Rezam. Cantam. Suplicam.

Viúvas da seca entoam canto de lamentação, e as mães choram seus filhos ausentes.

O sino da fazenda toca.

Mulheres cantam hinos, invocando os santos da devoção.

 Padre Hosana intercede, pedindo que se abram os reservatórios do céu sobre o Norte de Minas Gerais.

Fiéis, ajoelhados pedem chuva.

 Despejam sobre a cruz da capela de Santa Catarina as garrafas de água que levaram. O padre inclinou-se até o chão, pôs a cabeça entre os joelhos e disse ao vaqueiro Alexandre Gudes:

“Vá e olhe para o lado de Sete Passagens.”

O vaqueiro foi e voltou dizendo:

“Não vi nada.”

Sete vezes o padre mandou que ele fosse olhar.

 Na sétima vez, o vaqueiro voltou e disse:

“Eu vi subindo da serra uma nuvem pequena, do tamanho da mão de um homem, como nos tempos do profeta Elias.”

Logo, o ribombar do trovão, dá sinal de que o céu ouviu as preces penitentes daquela gente sofrida.  Lágrimas de agradecimento se misturam às gotas miúdas de chuva, chorada em peneira fina. Correm e escorrem nas costas dos meninos vestidos só da cintura para baixo.

 A procissão se desfez. Fiéis retomam a estrada, e avançam cerca de légua e meia no rumo de casa. Naquele ano, choveu pouco. A luta para salvar o gado era interminável. Levantava um animal aqui, caia outro ali. Levantava-se um ali, caia outro acolá... Até barrigueira para o animal ficar em pé, o Coronel Generoso fazia. Aprendera a salvar gado nas grandes secas do Nordeste, dando papelão molhado e garapa de rapadura às reses mais fracas. Muita gente fazia o mesmo e salvava parte do rebanho.  Quem não tinha papelão, oferecia cacto sapecado, levemente queimado, para eliminar os espinhos.

Na fazenda Campo Grande, Batista Generoso aplicou seu conhecimento de nordestino corrido da seca, para salvar animais em anos de estiagem no Norte de Minas. A mulher de Generoso, nunca tinha visto semelhante cena.

– Papelão para vaca parida, meu Dengo? O pasto está minguado, o leite também, mas você pode comprar torta de algodão e dar ao gado.

– Nada não, mulher! Quero que o leite saia embalado como ovo de galinha.

– E a garrafada de rapadura? É para o leite sair adocicado?

– Sê besta! Rapadura é o melhor energético para levantar animal caído.

Generoso não quis contar que na seca de 15, ele comeu sementes de maniçoba, apanhadas no esterco das vacas. Nem precisava dizer. Corina sabia que seu marido era retirante, como milhares de nordestinos, que abandonam suas terras, por causa da seca.

Corina consola o marido. “Mais cedo ou mais tarde, a chuva virá. “

No outro dia, a tantos de dezembro, mais uma vez, a peonada se reúne no alpendre, confiantes de que o céu ouvira suas preces. Mas, a ausência de nuvens era sinal de que naquela noite, os anjos que cuidam dos fenômenos naturais, não haviam despachado nenhuma encomenda de chuva para a Terra.

Generoso dedilha a viola, repetindo as notas que se tornaram prelúdio de sua apresentação.

 

Tiru–liru–liru, liru– liru–liru–lão.

A seca de 32 não foi culpada sozinha,

porque desde 27 que ano bom já não vinha.

 

Tiru–liru–liru, liru–liru–liru–lão.

 

Corina pede que o marido toque Saudade do Riachão.

– Primeiro toco meu amor por você.

– Tem música com este nome?

– Tem...Existe desde 1926.

E tocou Tristeza do Jeca.

 

Nestes versos tão singelos. Minha bela, meu amor.

 Pra você quero contar. O meu sofrer e minha dor...

 

As palmas explodiam nas mãos calejadas.

 Cafuçus, meeiros, enxadeiros, vaqueiros e toda a peonada gritava:

“Esse é meu patrão!”

 Entusiasmado, Alexandre Guedes pega o pinho, e a noitada continua. Ora viola, ora violão, e não se sabe com a “Tristeza do Jeca” qual o coração mais chorava.

– Quem é o cantor? Perguntou Pururuca.

– Não está vendo animal, que é o coronel, respondeu Turíbio Medonho.

Generoso riu.

E em estrondosa gargalhada não pôde segurar o berro, quando a barriga subindo e descendo, chacoalhou. E a coalhada chacoalhada, respondeu com um trovão abafado: “Afôôônso..."

Corina beliscou as costas do marido:

Meu Cravo, não leve a Tristeza do Jeca para debaixo das cobertas.

Os meninos riram.

E um deles disse em voz alta: “Foi o coronel quem peidou.”

Tunico Oliveira tentou consertar o vexame.

– Pururuca queria saber quem compôs a música que o Coronel interpretou. Há quem diga que meu parente Angelino de Oliveira, apresentou a Tristeza do Jeca em 1918. Mas, foi o cantor Patrício Teixeira quem gravou a primeira versão com letra em 1926. Talvez, a apresentação de Angelino em 1918, tenha sido apenas instrumental.

– Né isso não. O assunto já outro, faz horas! Se o menino não aponta o responsável, a culpa do peido caia em mim, disse Pururuca.

Houve uma trovoada de risos.

E Pai Luís deixou cair a dentadura na xícara de café.

– Inté outro dia, patrão.

– Até.

Batista Generoso recolhe-se.

Antes de dormir, contabiliza as perdas: quase metade do rebanho graúdo o urubu comeu. Consolava-lhe, no entanto, a expressão popular: “Vão-se os anéis e fiquem os dedos.” Reconfortado, seu coração, antes agitado por preocupações, desvia o foco do incômodo e aquieta-se aliviado. “Melhor morrer lutando pela vida do que se entregar à morte sem lutar.”

 

*** 

 

Adalberto Lima - Estrela que o vento soprou (obra em construção).

Imagem: Internet