Cutucões e pontapés II

O medo e a impaciência parecem fazer parte da nossa vida antes mesmo de nascermos. Lembro que no dia que estava para nascer (na verdade não lembro, não conscientemente – mas uma tia que me contou isso muito tempo depois – minha mãe não me contou nunca pois tinha medo de eu ficar traumatizado). Ela, minha tia, conta que no momento que eu estava para nascer a parteira teve que chamar mais umas 5 mulheres tamanha a força que eu fazia para não sair daquele lugar quentinho e protegido onde eu estava. Só de vê-las nervosas porque eu não saia me deixava com menos vontade de vir ao mundo – ele se enroscou no cordão umbilical - dizia uma - pode morrer, agora tem que sair na marra.

Lembro-me ainda que, quando ainda no ventre da minha mãe, eu ouvia – as estatísticas de que o feto sente tudo, mesmo que inconscientemente, é verdade. Minha mãe ia à feira, olhava as verduras,legumes, e reclamava que estava tudo pela hora da morte. “ai, ai, ai – pensava eu – e eu aqui que ainda nem nasci!”.

Em casa chegavam as comadres da minha mãe e começavam a futricar e o pior que chegavam logo na hora da minha soneca uterina das 3 da tarde: “vocês viram a Glorinha? Viram como ela engordou? Daqui a pouco o marido larga dela ela vai ver!”; “ah, vocês não sabem da última... – dizia, toda imponente a vizinha da frente – olha, Carminha, você sabe, eu deteeeeesto fofocas mas a Joaninha anda falando mal de você pelas costas... pronto, falei! – e como dormir com um barulho daqueles? Tirar minha soneca diária das 3 da tarde? Fiquei com raiva e dei um chute na barriga da minha mãe - o que me arrependo até agora – mas isso me deu uma idéia que eu usaria sempre, pois deu certo.

Minha mãe reclamou: ai, ele me deu um chute, que dor!!! Daí as vizinhas de fofocas, preocupadas, resolveram que o melhor para ela era descansar, daí as dores parariam. Ela precisava de descanso. E eu também.

Um dia minha mãe foi ao açougue e pediu uma carne de primeira. E eu já com os ouvidos aguçados pela minha pouca mas rica vivência intrauterina “fiquei de olho”. Ouvi minha mãe reclamar: mas Seu João, isso ta é parecendo carne de segunda... Eu mais que depressa dei uns pontapés na barriga da minha mãe. Ela começou reclamar de dores e falou que iria embora, deixaria a carne para outro dia. E cada vez que eu ouvia ela dizer que ia ao açougue do Seu João já começava a dar meus chutes e ela desistia. Ia comprar carne no outro açougue ou supermercado, mas ali ela não pisou mais. Enganar minha mãe? De jeito nenhum. Filho também é pra proteger a mãe. E eu aprendi fazer muito bem. Meu pai já dava duro para nos sustentar, então alguém mais tinha que ajudar de alguma forma.

Tive um amigo que me contou (muitos anos depois, claro) que com ele aconteceu a mesma coisa: um dia lá estava sua mãe (e ele, claro) na padaria e ele ouviu sua mãe falar baixo, como se estivesse pensativa que a fila era enorme e tinha pressa pra voltar pra casa e fazer o jantar. Ele não pensou duas vezes. Começou a chutar a barriga da sua mãe (com carinho, claro, como eu também o fazia). Ela começou reclamar de dores pelos chutes e alguém gritou:

- deixem essa mulher passar na frente, ela está grávida e não está passando bem.

E lá foi ela comprar o pão e voltar logo pra casa. Ele disse que não se agüentava de tanto rir que até fez xixi.

Disso de fazer xixi, eu não me lembro. Bom, mas também tanto faz; estávamos nadando no líquido amniótico, então não fazia diferença.

Ah, e esse amigo meu também tirava seu cochilo diário lá pelas 2 ou 3 da tarde! Afinal, ninguém é de ferro.

Então chegou o grande e temeroso dia. Temeroso porque sabe como é né? Antes eu estava na barriga da minha mãezinha. Tudo quentinho e aconchegante. Eu dormia à vontade e acordava a hora que minha mãe também acordava. Às vezes eu acordava primeiro e dava um leve pontapé bem carinhoso na barriga da minha mãezinha só pra ela saber que eu já tava lá pronto pra tomarmos o café da manhã ou chá da tarde, enfim...

Então o grande dia afinal! Eu comecei ouvir vozes lááá longe! Eram mulheres conversando. Ouvi alguém dizer: vamos fazer parto normal; e outra dizendo: não, vamos levá-la ao hospital e fazer cesariana que é melhor, não corre risco. “Não corre risco??? E eu aqui não tô correndo risco nenhum? Ninguém pensa em mim não?”. Resolvido. Minha mãe iria ao hospital. E lá vamos nós correndo pro hospital. Nossa, como é grande! Sinto isso pelas vozes e correria. Pronto! Minha mãezinha está deitada numa cama confortada, vozes de autoestima a ajudam a se controlar e eu também vou ficando tranquilo. Nada melhor que uma cesariana. No parto normal vai que eu... nossa, nem pensar! Enfim sinto minha mãezinha dormindo. Sei disso porque falaram palavras de tranquilidade pra ela e a sinto adormecida. Tempos depois, muito tempo depois eu começo a aparecer nesse mundão de Deus. Vejo pessoas e um homem de verde me segura pelas pernas e me dá um tapa no bumbum. Até que não doeu. Ele foi carinhoso comigo. E lá estou eu no meio de outros bebês que vieram ao mundo. Tô vendo até uma gatinha. “Me Põe perto dela” peço com meu jeito traquina. E não é que ela, a enfermeira me pôs mesmo perto da gatinha? Logo, logo eu vou contar pra você o que conversamos. Por enquanto é segredo. Vai ficar só entre nós, eu e ela. Tchau pra você e até logo!

Ajosan
Enviado por Ajosan em 02/08/2022
Código do texto: T7573666
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