Eu tenho sempre que voltar

Acordo e tenho que ser eu. Ora que grande absurdo isso que nos cobram, escuto uma exigência vã de outros que me cobram que eu seja eu. Como se eu de fato soubesse ser. Pelas primeiras horas da manhã e as últimas horas distraídas do dia devo ser algo mais próximo do que professo ser eu. Nesses momentos parcos eu gosto de mim e tenho comigo paciência. É como se minha solidariedade por mim crescesse e de alguma forma eu pudesse ser um ser humano decente.

Entrei no carro e peguei uma estrada conhecida rumo à praia. A música toca alto, mas isso não me distrai de mim. Vejo as sucessões de imagens que passam por mim, mas nessas horas, como disse, não preciso de esforço para ser eu, percebo, contudo, o esforço que faço para ler o eu que sou. Esse eu tá cheio de novas coisa para acomodar, e ao redor tem tudo, ferramentas, espaço, paciência, talvez me falte alguma habilidade. Então estou ali com todo esse espaço e ferramentas, vou usando a calma pacífica que não se exaspera diante da minha inabilidade, porém nada consegue progredir porque a paciência pode até ser uma virtude, mas ela não avança, além de ser repetida e monótona. Olho novamente as imagens que passam rápido fora do carro, desbaratinada. Não enxergo nada ao certo e tampouco isso importa. Ser eu sozinha é a versão mais verdadeira e assustadora de mim. Observo muita coisa amontoada num lugar e está claro que a leitura do meu eu está dificultada, mas não impede a compreensão, eu sei quem eu sou. A despeito do espaço mal ordenado...

Chego à praia, dou passos desajeitados na areia, sento e deixo a água me procurar, bater no meu corpo.

Fico até o sol sumir.

Entro no carro. Não me acho. Nem são as horas iniciais do dia, tampouco as horas distraídas, por isso me perco.

Nesse meio tempo sem saber de mim a paciência foge, um eu raivoso ordena o amontoado de coisas que ocupavam um só lugar, a habilidade de ser eu é quem coloca as coisas da melhor forma possível. Eu sigo sem me enxergar e estranhamente me sinto também confortável, a ordenação de mim, a habilidade compensa minha não paciência momentânea. Isso de não me achar em mim reclama, e a habilidade deixa de ter sua importância, posto que já está tudo ordenado.

Eu quero voltar. Eu tenho habilidade, mas eu quero paciência. Aos poucos eu estou nas horas distraídas do dia e eu tenho que voltar...

Eu tenho sempre que voltar para mim.

Suze Rodrigues
Enviado por Suze Rodrigues em 30/07/2022
Código do texto: T7571536
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