Aquela iguaria
Não posso dizer que saiba o que é fome embora tenha passado por situações de penúria. Na falta do necessário a um mínimo de dignidade minha mãe laçava mão de certas iguarias que em tempos melhores me faltou ocasião de saborear novamente. Em nossa humilde mesa eram comuns os pescados de ribeirão e os refogados de ervas nativas como a marianica, a serralha, a beldroega e o broto da samambaia, tubérculos como a batata doce e o inhame. Entre esses pratos que o cuidado de minha mãe tornava especiais, estava o molho de mamão verde, que ela preparava picando em pequenos cubos, ferventando para tirar o leite, e refogando no alho, sal e pimenta-do-reino que, usando um martelo, ela triturava envolta numa trouxinha feita com o pano de prato.
Cresci. As coisas melhoraram. Entrei naturalmente no ramerrão da vida deixando para trás muito das alegrias daquelas coisas pequenas, enquanto o peso dos anos ia tolhendo os passos e a agudez do olhar de minha mãe, revertendo o sentido das coisas até ao ponto de eu ter de preparar as suas refeições. Agora sou eu que fico buscando meios de agradar o seu paladar exigente. As panquecas do seu café da manhã têm recheio de requeijão caseiro. Não é um luxo. É só um mimo a que ela tem direito por merecimento.
Há cinco anos, quando ela acabara de completar oitenta, transferi meu humilde ateliê para um porão de sua casa, de onde posso acompanhar o seu dia-a-dia. Num dos primeiros dias lembrei-me daquela iguaria que não comíamos havia pelo menos quarenta anos. Pedi a um amigo, morador da zona rural, que me trouxe de muito boa vontade um belo mamão verde que preparei da forma como eu me lembrava que ela fazia e aguardei com ansiedade que ela descesse para o almoço. Não tive que esperar muito pois os seus horários continuam rígidos como nos tempos da minha meninice.
— O que é isso? Ela perguntou olhando desconfiada o conteúdo da panela.
— Não adivinha?
— Não.
— É molho de mamão verde.
— Credo! Não vou comer isso.
Foi grande a minha surpresa:
— Mas a senhora gostava tanto! Fazia muitas vezes quando eu era menino...
— Nunca gostei. Fazia porque não tinha outra coisa pra fazer.
— Mas a senhora comia com tanto gosto...
Foi então que minha mãe me deu a maior lição de sua vida:
— Comia, mas não era com gosto. Comia porque do contrário vocês também não comeriam.
Emocionei-me ao perceber a grandeza daquela atitude do passado. A que ponto chegava a abnegação daquela mulher a se mortificar pelos filhos.