Carta escondida dentro de um verso

 

Amar é sofrimento de decantação.

(Adélia Prado)

 

     Um vazio, o medo da morte, o pavor diante do escuro, as lágrimas causadas pela solidão, as respostas que não vêm, esperas que se alongam ao infinito, algumas angústias presas na garganta, uma tentativa outra vez frustrada, um aperto no peito... Quanto de sofreguidão cabe dentro de uma vida? Pois sim, pois não. A medida da vida é o sofrimento, poetiza Adélia Prado. Havia mais para ler, mas aquele verso fincou suas garras em mim: a medida da vida é o sofrimento. Das dores de parto às dores da morte, a medida da vida é o sofrimento. É preciso tempo e silêncio para a alma decantar os aprendizados que se movem dentro deste versinho de Adélia.

 

     Parece-me que ela está querendo nos dizer que as coisas pelas quais sofremos adquirem outro valor. Não são os dias de felicidade apenas que medem a vida e atestam seu quinhão. Sua régua mais fiel é outra: são as horas difíceis, é o suor sofrido, o empenho dispendido, as resistências e as persistências. Pois sim, pois não. A medida da vida é o sofrimento. Em ritmo sempre crescente. Os de hoje fortalecendo-nos para os de amanhã, que certamente virão. E por que tem que ser assim? Não sei! Apenas intuo, com o requintado auxílio da poesia, que é este o caminho. E isto desde criança. Pois, como ensina Rubem Alves, é preciso mostrar a elas, às crianças, que a vida se faz também com choro. E trágico é quando isso não acontece.

 

     O frágil mundo contemporâneo, sustentado sobre a liquidez de Zygmunt Bauman, descarta o inexorável papel do sofrimento na construção de pessoas fortes, oferecendo facilidades e futilidades para a autorrealização, contudo, forjando pobres e doentias sensibilidades. Sobre a vida em Auschwitz, por exemplo, – vida ainda tão próxima de nós, diga-se de passagem – e o que ali se viveu, Viktor Frankl confessa, em nome de todos: Podem nos perguntar. Nós sabemos dizer até que ponto é verdade que a pessoa a tudo se acostuma, sem dúvida! Mas ninguém pergunte de que modo... As reticências que ele coloca no final da frase, só as entendem quem leu o seu relato, intitulado Em busca de sentido. Sofrimento é o que não faltou para aqueles judeus exilados.

 

     Se a dor e o sofrimento têm seu preço, a tentativa de evitá-los a qualquer custo, muito custará – e rapidamente. Pois sim, pois não. A medida da vida é o sofrimento. Mas, quem leu a poesia? Se nem sequer poesia leem os de hoje, quanto mais embeber-se das verdades que elas contêm. Por que, pergunto-me, por que ela escreveu isto? De onde lhe vem a inspiração, posto que, lido com demora, o próprio verso é sofrido demais, é forte, é pesado, é intenso. A certa altura de seus ensinamentos, Jesus fala de alguém que encontra um tesouro no campo, vende tudo e compra aquele campo. Quem poderia imaginar que também de dor seria feito um tesouro. Sim, digo-vos, ó excelentíssimo leitor, ó digníssima leitora, há preciosas riquezas guardadas dentro dos agrestes terrenos dos sofrimentos. Ignorá-los, evitá-los, adiá-los nem sempre convém.

 

     Que não se deva sair por aí à procura de martírios, isso até os loucos sabem. E não é a isto que Adélia instiga. O que está em jogo é este aprendizado duro e necessário: a medida da vida é o sofrimento. Quando, afinal, se descobre isto? Não é no primeiro choro, nem na primeira perda, tampouco em tenra idade. Quando então? Será após os cabelos brancos, será depois das mãos calejadas, será quando a certeza de que o tempo que nos resta é menor? Sim, a descoberta desta poesia da vida se dá lá na frente. Uma coisa é sofrer, bem outra é descobrir que a medida da vida é o sofrimento. Digo outra vez: é preciso tempo e silêncio para a alma decantar os aprendizados que se movem dentro deste versinho de Adélia, nesta carta escrita em suas profundas intuições, nestas verdades que tão somente a poesia tem a intrepidez de anunciar – sempre de modo sedutor – ainda que nos façam chorar. Pensando bem, que belo destino o nosso, semear em lágrimas o chão – outra vez Adélia. Mas este verso fica para outro texto, outra carta. Um dia qualquer por aí...

Padre Fernando Steffens
Enviado por Padre Fernando Steffens em 26/07/2022
Reeditado em 26/07/2022
Código do texto: T7568672
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