Crônica do desapontamento
Crônica do desapontamento
(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza.
DIA DESSES, num desses points de fim de semana, eu estava com um amigo tomando umas cervejas. De repente, a mesa atrás de nós foi ocupada por três jovens. Mais que depressa, tratei de passar os olhos na trinca e confesso, me encantei, à primeira olhada, com a beldade dos cabelos compridos com algumas mechas vermelhas. Acho que ela percebeu a minha insistência, e, para jogar gelo na minha afoiteza, ou qualquer resquício de tentativa de aproximação futura, se sentou de costas para meu total desagrado e irritação.
Marquinho, meu amigo, também se deixou levar pela beleza e a elegância das recém-chegadas. Eu não sabia — ele estava de olho exatamente na moça que eu havia escolhido. Indaguei, de chofre, qual das princesas ele teria coragem de “levar um papo” e, para meu espanto e surpresa, ele apontou a que me deixara de queixo caído. Literalmente os quatro pneus furados:
— Vamos atacar? — disse ele a certa altura:
— Dá um tempo — observei. — Elas nem sequer tiveram tempo de esquentar lugar.
Rolou mais quatro cervejas. Resolvi “tirar o time de campo”.
— Você me deixa em casa? Amanhã acordo cedo. O trabalho me espera...
Marquinho balançou a cabeça e chamou o garçom para pedir a conta. Dividimos as despesas. Quando o rapazola voltou com o troco, lhe pedi que me fizesse um favor:
— Pois não! Diga o que deseja e terei prazer em atender.
— Está vendo as três simpatias que chegaram faz bom tempo?
— Sim senhor.
Entreguei a ele um papel de guardanapo com meu nome e o número de telefone celular:
— Faça chegar este bilhetinho às mãos da que está de frente para o balcão de frios. A beldade de costas para mim... os cabelos avermelhados...
Segui no encalço do meu amigo que já ia longe:
— Aposto que ela não liga — disse desdenhando enquanto abria o carro. Vale uma cerveja?
— Tranquilo. Porém, se ela cair na rede, você me deve meia dúzia.
— Fechado.
Uma semana inteira se passou. Nem sinal da garota do rosto atraente, sorriso maroto, cabelos compridos, alguns tufos carmesins, o porte de uma rainha dos contos de Meg Cabot. Contudo, quase um mês depois, deu sinais de vida:
— Alô...
— Pois não?
— Queria falar com o Casinho.
— É ele.
— Sou a Márcia.
— Márcia? Que Márcia?!
— Do barzinho. Você me mandou seu número de telefone pelo garçom.
— Ah, agora estou lembrado. Você é a gatinha que ficou de costas?
— Ela mesma.
Marcamos um encontro para aquele mesmo final de noite. O lugar escolhido: uma pizzaria que não ficava muito distante de onde nos avistamos pela primeira vez. Para início de conversa, na bucha, depois da pizza regada a refrigerantes, arrisquei fazer um convite indecente. Pedi que viesse ao meu apartamento.
Para meu espanto e satisfação, ela topou. Prometi solenemente que a respeitaria e não tentaria nada que viesse magoá-la. Sentados no sofá da sala, diante da tevê, assistindo a um filme sintonizado ao acaso do controle remoto e bebendo um vinho que guardava para ocasiões especiais, coloquei as mãos em torno de seu rosto e escancarei o coração:
— Quer ser minha namorada?
Ela foi rápida, fria e ao mesmo tempo séria:
— Casinho, procuro um amigo — disse com um sorriso largo. Alguém em quem confiar. Preciso falar dos meus problemas. Careço de uma pessoa que tenha a paciência de Jó e me ouça. Para ser sua namorada, de papel passado, me acho muito complicada. Além do que, sou chata, imatura e sem chão. E olha que sequer mencionei ser extremamente maçante. Você não me aguentaria muito tempo... logo me mandaria embora com todas as minhas tralhas e atribulações...
Depois desse papo inaugural em meu apê — liguei para ela umas seis vezes. Se não me falha a memória, deve ter me retornado umas duas, talvez três as ligações. Foi só. Márcia sumiu na poeira. Desapareceu tão silenciosa como chegou. No pouco tempo em que ficou, deixou no meu peito uma saudade estranha. Uma agonia que não demorou muito atingiu, em cheio, toda a parte fraca da minha carência.
Às vezes, na minha agonia gritante, fico imaginando se ela tivesse concordado com a proposta de namoro, logo no início, e assim, sem mais nem menos, topasse comigo em redor de um copo de cerveja colocando um anel de compromisso em seu dedo. Com certeza, hoje, estaria sentindo mais forte a dor do chute no traseiro, virado, quem sabe, às avessas, perdido num certo éter de um círculo do nada, sendo premido, massacrado por estiletes me cortando impiedosamente os pulsos, ou por outra, apunhalado por fantasmas iracundos e desintegrados de algum tipo de essência.
De certo, de palpável, de conciso, a Márcia passou pela minha vida como um cometa. Um sonho gostoso e bom, uma quimera que durou apenas o tempo de uma pizza e, logo depois, de um copo de vinho gelado. Márcia, pequena luz concêntrica, esperança que brilhou dentro de mim, de maneira muito forte e abundante. Da sua voz restou o desprovido de conteúdo. Da sua presença adocicada, o adeus sem regresso. Permaneceu também a imensidão dos carinhos e afagos, dos beijos e abraços que deixaram de ser permutados.
Em meu ser, em cada batida do coração, algo indescritível segue me atiçando ao amplexo do tempo, como se a minha vida tentasse se manter viva dentro de uma bolha. De tudo, ficou, a lembrança daquela menina tímida que me virou as costas. Persistiu a mágoa dolorida, perseverou o descaso, teimou a insensatez, porfiou o vazio incomensurável de um adeus pesado e sem volta.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro