Literatura ruim no dos outros é refresco
Literatura ruim no dos outros é refresco
Estou eu aqui sozinho com a precariedade dessa vida em mutação e suas agonias. Na sala de espera do proctologista. Sou o estranhamento no ambiente onde quatro figuras mantêm o cordão umbilical das respectivas mentes no ventre do universo duvidoso e estreito do celular. Ávido por palavras escritas sem o brilho falso das amenidades da internet, percorro o olhar inquieto pela sala. No cantinho, por trás do birô da atendente, uma mesinha com livros e revistas desatualizadas. Eram publicações de autoajuda e alguma literatura espírita. Mesmo com sede de leitura, o material não era aplicável. Ao lado, uma caixinha. Abri, e foi com uma alegria silenciosa que tive o grande assombro de ver cordel paraibano exposto numa sala de proctologista, livrando-me das obras que pretendem justificar meus desatinos e ajustar minhas falhas de caráter por “uma vida melhor”.
Ocupei-me em deglutir os folhetos e nos sessenta minutos seguintes li Beto Brito nos cordéis “O homem que vendia chuva”, “O vendedor de fumo”, “Violeiros do futuro”, “Filosofiando”, “Assim falou Zé Limeira”, “De onde vem o baião” e “Dever eu devo, mas nego enquanto puder”. Nas capas xilogravuradas, o artista avisando que se trata de “cordel universal”, que Beto Brito pensa mais alto do que Bento Júnior. Este quer seu cordel brasileiro. Mas foi tão bom ler os versos de Beto Brito! Porque o cordelismo é fé de muito poeta de gabinete ruim, sendo que a delicadeza e o sabor da poética nordestina, dita popular, pronta para ser traduzida em qualquer idioma, é privilégio de alguns. Dentre esses, Manuel Monteiro, de quem li “Cartilha do diabético”, folheto muito próprio para sala de médico. No pacote, outro cordel de gracejo com Antonio Lucena e seu “Severino Tira-fama, o chifrudo valentão”. Ainda deu tempo de viajar nas chalaças de Maria Braga, “Diferença entre o jovem e o idoso”, e “Ceverino com C, o homem mais azarado”, do confrade Vicente Campos Filho.
Mas, como sou mortal, apesar de acadêmico cordelista, fui enfrentar a ameaça invasiva do profissional com aquela espécie de temor usual da exposição de nossas misérias carnais. Levei, entretanto, o encantado momento da viagem ao mundo do cordel universal, as palavras dos poetas parecendo sobrepairar nos medos e preconceitos estritamente masculinos. Quando a boa literatura de viés popular aparece casualmente na sua vida, você percebe que está em plena aprendizagem aos quase setenta anos. A literatura não tem limites nem é elitista ou popular. É só boa ou ruim. Beto Brito, por exemplo, desmistifica a ideia de que cordel é uma célula intransferível da visão do matuto nordestino sobre a humanidade. Até pode ser, mas tem que reconhecer sua contextura de valores universais da poesia disfarçada de cactos e sol do sertão.
Meu compadre poeta Vavá da Luz, homem de bem com a vida e de mal com o mau humor, até nas piores circunstâncias, ao descobrir um tumor na próstata, minorou a penosa sensação de se encontrar com o pé na sepultura escrevendo um cordel que se tornou clássico nos melhores consultórios de urologistas desta Paraíba, a partir da divulgação feita pelo seu médico, com sua permissão. Trata-se de “O dia em que o dedo do doutor me salvou”.
Clarice Lispector escreveu um pensamento que adaptei ao que ocorreu com meu compadre Vavá: “Temos disfarçado com pequeno medo o grande medo maior e por isso não falamos no que realmente importa. Falar no que realmente afeta é considerado uma gafe. Não temos sido puros e ingênuos para não rirmos de nós mesmos”. Vavá zombou dele e de sua doença no seu gracejo poético que hoje está emoldurado nas paredes dos profissionais da urologia. Escapou da morte com a candura dos puros e francos poetas do povo e sua capacidade de ridicularizar com a dor de existir. Eu pensando sobre esses mestres da palavra travessa, escrevi na contracapa do trovador rabequeiro:
Para abafar o seu grito / aconselho Beto Brito / Para o doente e aflito / a receita é Beto Brito / até pra zombar do “mito” / utilize Beto Brito.