Então, Dona Risoleta, sua aula virou funk e seu aluno acabou pagando uma de MC
- Então galera, a previsão pra hoje é de céu limpo, praticamente sem nuvens. Tá favorável pra observação, só a temperatura um pouco desconfortável. Mas vale demais a pena: a oeste, vamos ver Órion e o Cão Maior, Touro, as Plêiades e Gêmeos; a leste, Centauro, o Cruzeiro do Sul e o Escorpião. Quem estiver a fim, às sete horas no campo, bem agasalhado.
- Eu vou colar lá, Professor! Minha irmã pode ir ver também? Toda noite ela me pede pra mostrar as estrela pra ela, tá ligado?
- Pode sim, Tá Ligado! Pode trazer irmã, pai, mãe, avós, tio, primo, cachorro, gato, papagaio. O céu é de todo mundo! E pra vocês conseguirem identificar mais rápido, vou mostrar as imagens das constelações, mas já adianto que nada se compara a ver os astros na direta...
O Educador tava muito empolgado com o computador. Doação de uma faculdade que tinha substituído todos os PCs obsoletos. Pro pessoal do Projeto, era o que havia de mais moderno, simplesmente porque era o que havia. Mas o equipamento tava em bom estado, contrariando a aparência de uma idade mais avançada. Mais que suficiente pra finalmente aposentar o esquema lousa-giz. Evolução. Revolução. O que os olhos veem, o coração sente e o cérebro registra.
O curioso é que os adolescentes ainda quiseram manter o sistema de anotações. Então o Educador exibia as imagens e os meninos escreviam no caderno as famosas palavras-chave. Nada de textão desnecessário e desgastante. Tava dando certo. E todo processo de mudança precisa ser gradual mesmo.
- Essas duas aqui são Castor e Pólux, os gêmeos.
- Como escreve Pólux, Professor?
- Com X e acento no O. É uma paroxítona terminada em X, então tem que acentuar.
- Aff, nem fala! Não dá pra ficar só na Astronomia? Tirei dois na prova de Português, não consigo aprender essa parada.
- Relaxa, todo mundo se danou! É muita regra, não dá pra lembrar, tá ligado? E esses nome mó cabuloso que nem parece da nossa língua, mano! Paroxítona, sílaba tônica, ditongo...
- Pior que a professora vai dar essa fita de novo na bimestral.
- Vixi, vai todo mundo bombar!
- O Professor cantou o acento do maluco lá dos gêmeos, Bro! Você manja, Professor? Tem jeito de ensinar esses paranauê pra nós?
- Dona Risoleta!
- Riso o quê?
- Minha professora de Português do fundamental! Todo mundo aprendeu acentuação com ela. Era extremamente séria, rígida mesmo, daquelas que não admitia conversa paralela na sala, mas excelente professora. Ensinava com paixão e não sossegava até que todo mundo aprendesse. E pra ortografia era top.
- Orto o quê? Que bonde de nome esquisito!
- É do grego: orto significa correto, grafia é escrita. Então, ortografia é escrever corretamente.
- Maneiro, Professor! Mas geral só quer saber se vai ter a moral de abrir o segredo da tia aí da quinta série, a Dona Riso...
- Risoleta, é Dona Risoleta, pessoal. Tem como ensinar sim, tem uns macetes pra lembrar as regras, mas vamos precisar partir do zero.
- Já vi tudo, vai ser a mesma groselha da escola. Na hora, todo mundo acha que aprendeu, chega na prova ninguém lembra de nada!
- É, mas se tivesse que escrever a letra de um funk na prova todo mundo ia tirar dez, tá ligado?
- Tá Ligado, você é um gênio!
O nome do menino era Wescley, mas ele não conseguia terminar uma frase sem falar “Tá Ligado?”. O apelido veio naturalmente. Pior ficou quando começou a namorar a Aninha “Tipo Assim”, mas essa é outra história. O que importava é que o rapaz tinha acabado de dar o insight pro Educador: adaptar as regras de acentuação da Dona Risoleta.
- Pessoal, quando vai ser a prova?
- Última semana do mês, acho que na quinta-feira, Professor.
- Então a gente só tem duas semanas! Vai ter que ser no modo intensivão. Preciso de vocês aqui todos os dias, a partir de amanhã, sem falta, sem desculpa, sem mimimi.
- Mas e as estrelas? A observação de hoje tá de pé?
- Vamos ver o céu hoje à noite, amanhã começamos acentuação e aí vai depender só de vocês: quanto mais rápido desenrolarem o conteúdo, mais rápido voltamos pra Astronomia.
Na manhã seguinte começou o desafio.
- Galera, antes de sair tocando o terror, bora colocar os pés no chão e começar pelo começo. E o primeiro passo pra acentuar ou não uma palavra é identificar a sílaba tônica.
- Ih, pronto! Já começou os código morse! Que parada é essa de sílaba tônica?
- Calma, Presidente! Paz no coração! A tônica é a sílaba mais forte da palavra. É aquela que a gente pronuncia com mais intensidade. É só treinar, falando a palavra, que vocês pegam a prática pra reconhecer.
E são só três categorias:
1) Oxítona: quando a sílaba tônica é a última.
2) Paroxítona: quando a forte é a penúltima.
3) Proparoxítona: quando é a antepenúltima.
- Não façam essas caras de quem vai entregar o jogo ainda no primeiro tempo. Vamos pros exemplos pra clarear as ideias.
- Olha a regrinha pras oxítonas: se terminarem em "A", "E" ou "O", tem que acentuar. É o caso de fubá, igarapé, metrô. Se terminarem em "I" ou "U", só devem ser acentuadas as que tiverem uma vogal antes. Assim, açaí e tuiuiú são acentuadas, porque antes do "I" e do "U" tem vogais, enquanto saci e urubu não são, porque antes do "I" e do "U" tem consoantes.
- Wow, até que não parece tão embaçado agora!
- É, Larissa, mas vamos pianinho, que tem umas mais complicadinhas: as paroxítonas. Lembrem que nestas o acento é na penúltima sílaba, mas pra saber se acentua ou não, a gente tem que ver como é o final da palavra. E não tem outro jeito: precisa decorar. Então, a regra é clara! Devem ser acentuadas as paroxítonas quando terminarem em:
L (fácil)
I (táxi)
X (látex)
ÃO (sótão)
US (bônus)
A (órfã)
N (pólen)
DO (ácido)
R (repórter)
UM (álbum)
- Até entendi a fita do acento na penúltima dependendo da letra final da palavra, mas é muita coisa pra lembrar, Professor!
- É letra demais nessas Paroxítona, acabou que nem lembro mais as regra das primeira, tio!
- Ok, tá certo, Ariane, não é fácil mesmo. Mas agora quero que vocês leiam só as letras na sequência vertical.
- LIXÃO USANDO RUM!
- É isso, meus queridos! Tem que acentuar as paroxítonas terminadas em LIXÃO USANDO RUM.
- Da hora, mano!
- A tal da Dona Risoleta devia ser pancada, tá ligado?
- Agora tem só mais um pequeno B.O. pra vocês dominarem a acentuação. São as paroxítonas terminadas em ditongo crescente.
- Meu Deus, quando a gente acha que tá ficando top, aparece uns lance mais enrolado, irmão!
- É, mas essa regra é muito importante, Jobson! Se vocês aprenderem bem, vão saber acentuar a grande maioria das palavras. Funciona assim: ditongo crescente é o encontro de uma vogal fraca ("I", "U") com uma vogal forte ("A", "E", "O"). Quando a palavra for paroxítona e terminar com um encontro assim, deve ser acentuada. Exemplos: eutanásia, série, câmbio, língua, tênue e inócuo.
- Olhas os exemplos que o cara passa, veio! Não sei o que significa nem metade dessas palavra.
- Relaxa, Perfume! Não se preocupe com significado agora. O importante é entender as regras. Palavra em que a sílaba forte é a penúltima e termina em ditongo crescente (vogal fraca + vogal forte) tem que ser acentuada. E pronto!
- Beleza, maravilha! Já aprendemos tudo, então por hoje é só, né Professor?
- Pior que não, Dom! Ainda falta a parte mais difícil: as proparoxítonas.
- Ah, desisto! Se ainda tem regra mais difícil, eu abandono.
- Calma, Ana Laís! É brincadeira! A regra é uma só: quando a sílaba tônica é a antepenúltima, a terceira de trás pra frente, a palavra é proparoxítona. E todas elas devem ser acentuadas.
- Caramba, pelo menos uma que não é deselegante...
- Sábado, última, esdrúxulo são exemplos dessa categoria. E, a propósito (que também é uma proparoxítona), a própria palavra proparoxítona é, quanto à acentuação, uma proparoxítona.
- Caramba, Professor! E não é que é mesmo...
- E essa parada de esdrúxulo, traduz aí Professor!
- Esdrúxulo significa estranho, fora dos padrões, esquisito. É também o nome dado a um verso que termina com palavra proparoxítona.
- Que bagulho louco, mano! Até que já não tô achando essa fita aí de acentuação tão osso assim.
- Mas é muita lei pra lembrar, tá ligado? Tem que descobrir qual é a mais forte, aí tem que ver o final pra saber se tem o tal do acento. Parece que a gente tá num trevo e não sabe pra onde ir...
- Desespera não, Tá Ligado! Eu criei uma fórmula com todas as regras que acho que vocês não vão esquecer. Só vão precisar cantar.
- Fala sério, Professor! O senhor fez uma música com as regras desse lance aí?
- Fiz sim, Witney! Segui a dica do Tá Ligado e fiz um funk! Puxa uma batida aí que hoje eu vou pagar de MC!
E os meninos começaram a batucar nas mesas uma levada no ritmo do pancadão. E o Educador cantou.
Tá difícil pra escrever
Vou te mostrar a solução
É só as regras aprender
Com o Funk da Acentuação
Se a palavra é oxítona
E termina em "A", "E", "O"
Não perca tempo, não vacile
Pode acentuar sem dó!
Mas se termina em "I" ou "U"
Cuidado pra não se dar mal
Você só deve acentuar
Se antes tiver uma vogal
Se a palavra é paroxítona
Você quer ser o número um
Acento se ela terminar
Em LIXÃO USANDO RUM
Ainda tem mais um lembrete
Pra escrever sempre decente
Acento na paroxítona
Que acaba em ditongo crescente
Mas e as proparoxítonas?
Como ficam na parada?
A regra é simples, nunca esqueça
Todas são acentuadas
E pra você que tá no osso
Fica agora a maior dica:
Diz a palavra, acha a tônica
Canta o funk e a regra aplica
Ah... Ah, Ah, esse funk descomplica!
Ah... Ah, Ah, na treva ninguém mais fica!
A música pegou, os meninos aprenderam e fixaram as regras de acentuação cantando e, vamos combinar, com muito exercício. Foram duas semanas de preparação puxada pra prova. E haja criatividade pra bolar atividades variadas pro estudo não cair na mesmice e, pela repetição, causar desgaste e desinteresse.
O Educador criou um jogo com placas. Os adolescentes formavam grupos. A palavra era escrita no quadro. Os grupos deviam levantar uma placa informando se se tratava de uma oxítona, paroxítona ou proparoxítona e outra placa, ao mesmo tempo, de SIM ou NÃO, informando se devia ou não ser acentuada. Bem estilo gincana de programa de auditório, mas funcionou legal.
O Educador tinha um mini system com toca-fitas. Ligava na Rádio 98 FM pra pedir a música que havia escolhido pra trabalhar com a turma. Ficava esperando horas e ligava de novo e de novo, insistindo, perturbando, até o locutor cansar e mandar tocar. Gravava a música em fita cassete, digitava a letra com as palavras sem acento e imprimia uma cópia pra cada aluno.
No dia seguinte, enquanto a música era executada, os meninos faziam a leitura da letra com as palavras sem acento. O desafio era identificar aquelas que deveriam ser acentuadas, conforme as regras estudadas. Robocop Gay, dos Mamonas Assassinas, fez um tremendo sucesso: uma avalanche de proparoxítonas.
E teve Rita Lee, Titãs, Legião Urbana. Mas estourou mesmo quando o Educador tocou Racionais. Teve que comprar o CD no camelódromo, porque esse tipo de música não era tocada por rádio de cidade do interior, deu um trampo pra digitar a letra imensa do rap, mas arrebentou com a molecada. Vida Loka!
Fizeram a prova.
- Professor, o senhor não vai acreditar, mano! A professora deu zero pra todo mundo!
- Fala sério, Dom! Como assim?
- Serião, Professor! Encanou que a gente tava colando, tomou a prova da geral e ainda falou que vai fazer reunião com os pais.
- Pior que é a real, a doida esculachou com todo mundo, Professor! Falou que a gente nunca ia ser capaz de conseguir nota azul se não fosse colando. Chamou a gente de trapaceiro, desonesto, mau caráter.
- Misericórdia! Mas vocês falaram pra ela dos nossos estudos, dos exercícios, do funk?
- Ela nem quis ouvir. Disse que não acreditava, que a gente era um bando de mentiroso.
- Que deselegante!
- É pra acabar! A gente se dedicou, maluco! Todo mundo aprendeu a parada, detonamo na prova e aí vem essa, essa...
- Esdrúxula!
- Isso mesmo, Djow! Vem essa esdrúxula e fala que não vai valer nossa nota.
- Bom pessoal, se vocês toparem, eu posso ir lá na escola pra falar com a diretora, explicar que não houve fraude na prova. Mostro pra ela os registros das nossas atividades, a evolução de vocês nessas semanas e, se for preciso, até canto o funk da acentuação.
E o Educador foi. Conversou com a diretora, relatou o trabalho que havia feito com os adolescentes, expôs o planejamento, detalhou as metodologias, contou a história do funk. Só não cantou.
A diretora mandou chamar a professora, que não recuou um milímetro da acusação de cola. Disse que os alunos estavam se comunicando numa gíria que ela não conseguia entender, um tipo de código, mas tinha certeza que haviam feito uma armação porque precisavam de notas altas pra alcançar a média. E resolveu parar a prova.
- Não era gíria, nem código! Era o funk! Eles só estavam cantando o funk pra lembrar as regras de acentuação! Eles não estavam colando!
- Funk? Pra acentuação? Que loucura é essa?
- Calma, Cláudia! O Educador Social do Projeto que os nossos alunos frequentam lá no bairro onde eles moram tava aqui me contando que desenvolveu uma metodologia... digamos... não tradicional pra trabalhar acentuação.
- Funk? Tocou funk pra ensinar acentuação?
- Ele fez um funk! E criou atividades... diferenciadas pra fixação do conteúdo. E a turma aprendeu!
- A turma aprendeu na versão dele, né Dona Bete? Porque aqui na escola, na hora da prova, estavam todos colando em grupo.
- Eles não estavam colando! E é possível provar! Peço encarecidamente, Dona Bete, que a prova seja reaplicada. Permita que eles refaçam, pra afastar qualquer dúvida. Pode chamar professores, funcionários, pais pra fiscalizar. Se realmente forem espertalhões que não dominam a matéria, não serão capazes de colar de novo.
- Acho razoável. Cláudia, por favor elabore uma nova prova pra amanhã, com o mesmo grau de dificuldade da cancelada. Chame alguns colegas pra acompanhar a aplicação. Eu também vou estar lá. E o senhor também está convidado, Professor! O senhor pode por gentileza avisar os seus, quer dizer, os nossos alunos?
- Refazer? Eu não vou fazer prova de novo!
- Se liga, Ariane! Vai ficar com zero?
- Eu tenho certeza que pelo menos nove eu tirava naquela prova, tá ligado? Eu nunca tirei nove na vida, Professor. Já tava imaginando chegar em casa e mostrar o boletim com nota azul pra minha mãe...
- Não é justo, ninguém colou! Eu quero a nota que eu tirei na prova!
- É Fatal que a Esdrúxula vai bolar uma prova da treva, que ninguém vai conseguir fazer!
- Galera, a real é que não tem outra alternativa. Vocês nem puderam terminar a prova. As notas seriam baixas porque várias questões ficaram em branco. Bora refazer. E a diretora exigiu que a professora elabore uma prova do mesmo nível.
- Essa professora mete o loco, mano! Nós não vamo nem chegar perto das nota que a gente ia tirar na prova que ela tomou.
- É isso mesmo, Fatal! Ela não vai dar moleza pra gente.
- Meus queridos, vou mandar só mais essa letra pra vocês: nota é importante, óbvio, ainda mais quando é fruto de muito estudo, interesse, determinação. É o resultado do esforço de cada um de vocês. Mas, o que mais pega, na verdade, é o conhecimento. É o que vocês aprenderam. E isso ninguém vai poder tirar de vocês. Vocês sabem acentuação!
E devem se preocupar em escrever corretamente a vida toda, não apenas numa prova. Abram a visão. Não fiquem limitados a focar apenas uma árvore estando diante de uma floresta inteira.
Refizeram a prova no dia seguinte.
Como se saíram? Nota não é mesmo o mais relevante nesta história. Só um bocadinho de spoiler então:
A Esdrú... quer dizer, a professora, teve um surto, quebrou toda a sala da diretoria. Foi afastada da sala de aula. No processo administrativo, alegou em sua defesa que qualquer pessoa perderia a razão quando submetida a tamanha humilhação.
A escola passou a convidar o Educador pra participar das reuniões de planejamento dos professores. Essa integração foi o ponto de partida para avanços expressivos e conquistas inimagináveis para meninos e meninas com potenciais extraordinários, que precisavam apenas de atenção, respeito e oportunidade.
E a mãe do Tá Ligado, pela primeira vez na vida, assinou o boletim sorrindo e chorando ao mesmo tempo.
- Salve, Dona Risoleta! À Senhora, toda a nossa admiração e gratidão, Professora!