A mulher imperfeita
Soube agora, por meio de terceiros, que a mulher imperfeita entregou a alma a Deus. Além de balconista de padaria, era católica praticante e dizimista habitual. Acreditava em Deus e em milagres, a mulher imperfeita. Mas infelizmente nenhum milagre a livrou do fim inevitável, a que todos nós, os vivos, estamos sujeitos. Não deixou bens materiais de vulto, apenas parcas verbas trabalhistas, um cão de nome "Bidu" e alguma saudade.
Sentirei saudade da mulher imperfeita. Em quase 100% das vezes, quando morre uma mulher imperfeita, o mundo fica mais triste do que de costume. Não será diferente desta vez. A mulher imperfeita ocupava um pequeno lugar no espaço e um grande, em meu coração. Agora o espaço está mais nebuloso e meu coração, arrasado, e o fato de hoje ser sábado só agrava a situação.
Era nos sábados, geralmente, que nos encontrávamos, informalmente, diante daquele balcão hoje ocupado por uma aparente mulher perfeita, que me cumprimenta com "Bom dia!"; que passa os produtos na esteira, de cabeça baixa; que me diz, ao fim do atendimento, "Obrigada!", em plena conformidade com os ditames gramaticais, esboçando um sorriso inflado e aparentemente assíncrono com seu estado físico e mental.
Diferentemente da mulher imperfeita, esta balconista perfeita não me chama de "Galego", mas de "Senhor". Não sabe ela (ou talvez até suponha ou adivinhe) que ser tratado pela alcunha de "Senhor" me desagrada muitíssimo mais que a de "Galego". A regra do jogo, o regulamento patronal, a cartilha do "Bom Atendimento", entretanto, recomendam evitar certas intimidades no trato com clientes. Talvez isso explique sua predileção por "Senhor" em vez de vocativo mais humano e atual. Por exemplo, "Galego", ainda que visivelmente não haja qualquer relação entre mim e esse cognome.
Não me importaria, ademais, ter exclusividade sobre esse apelido, tal qual me devotava a mulher imperfeita. Ela, me disse oficialmente certa vez, quando lhe perguntei se ela tinha por hábito tratar os clientes de modo tão informal e humano, e ela abriu um sorriso gracioso e desajeitado, ficou um bocado corada e disse que esse apelido era só meu. Encarei a resposta como um flerte.
Agora acho que exagerei um pouco. Ora, um dos predicados principais das mulheres imperfeitas é que sabem mentir muito bem. Não apenas mentem, como omitem, porém, não por prazer, mas por necessidade, para evitar mal-entendido, depressão, desassossegos. Adiam verdades, para evitar serem mal compreendidas. De tal modo que gentileza e simplicidade são outras características indissociáveis das mulheres imperfeitas.
Outra característica fundamental das mulheres imperfeitas é que elas estão cada dia mais raras. Em breve as poucas que restam sumirão todas. Ficarão apenas a inflação, as enchentes e as mulheres normais.