RELIGIÃO NÃO SE DISCUTE
Aquela viagem no coletivo parecia ser mais um trajeto tranquilo, sem maiores acontecimentos. Apenas o comum, não fosse a entrada de um senhor beirando os setenta anos que mais que depressa procura um lugar reservado a idosos e senta-se ao lado de Jurandir, mesma faixa etária, religioso praticante que tinha por hábito e por fé empunhar sempre um rosário que ia contando durante o percurso, silenciosamente fazendo sua oração, aproveitando assim o tempo perdido na condução. O recente vizinho a tudo observava, prestando muita atenção aos seus gestos e nutrindo uma vontade de interferir, mas ia se segurando. Reza vai, reza vem Jurandir absorto não percebia a curiosidade do homem que não dava trégua e continuava a espreitar.
Como curiosidade pouca é bobagem, este não se conteve e interferiu sem a menor cerimônia:
- Interessante essa maneira de orar, isso realmente funciona?
Sem dar ouvidos, Jurandir continua o seu ritual. Novamente a abordagem:
- O senhor não me respondeu. Eu lhe fiz uma pergunta.
Como que em transe em sua meditação, não há resposta. Passam-se alguns instantes, se finda a prece, com a mão direita faz o sinal característico dos cristãos e o cordão é cuidadosamente guardado no bolso. Ainda alheio a tudo Jurandir parecia não ter notado a presença do sujeito que o olha com desdém e lhe assedia de forma que outros passageiros possam ouvi-lo: - Que coisa mais absurda. Eu quando faço minhas orações não preciso contar bolinhas. Apenas ajoelho e peço com veemência, com muito fervor para que Ele me ouça. Na minha igreja não precisamos recorrer a terceiros para conseguir a graça. Jurandir quase cochilando, não diz absolutamente nada, enquanto que o outro se inflama:
- Como diz o Pai, idolatrar objetos é contra os mandamentos. Descreveu uns cem números de pecados listados e catalogados.
Enquanto eu e dezenas de passageiros ouvíamos atentos o discurso, Jurandir parecia não se importar com os gestos e as palavras do pseudo pregador, continuava imóvel no seu lugar, olhos cerrados, sereno sem se incomodar com nada.
Já cansado de tanto falar e irritado o homem tira do bolso do paletó vários panfletos, aplica um cutucão no braço de Jurandir e os coloca bem na cara dele, como que querendo mostrar as provas. Não se contendo, Jurandir com as mãos afasta os folhetos e finalmente fala:
- Não seja estúpido, eu sou surdo, mas não sou cego!