Fartas Lembranças Pálidas

O que eu não faria para entrar novamente naquela casa...

Espremida entre várias outras de mesmo formato, penoso de distinguir, compartilhando da mesma quietude da rua que lhe desnuda, ali está a primeira casa onde morei. Depois que deixei minha cidade antiga, cabisbaixo, inundado de saudosismo, foi naquela casa onde eu primeiro pisei. Ela me viu desolado, andando de cá para lá, pensando no que poderia fazer. Ela me viu lutando para me adaptar; posso dizer que me viu renascer.

Foi naquele espaço que também acompanhei a decadência que a vida determinou ao meu pai. Tudo começou na cidade antiga, mas foi naquela casa que acabou. Eu ainda me lembro bem das conversas que travamos, quando eu falava dos meus sonhos e ele me ouvia com satisfação, no terraço que dava para a sala de estar, ali onde ninguém mais tirava um tempo para frequentar. Lembro também das horas a fio em frente à TV, sempre a postos para atender à sua próxima necessidade. E não se desbotam as imagens de quando ele ia embora, visitar os pais e irmãos que moravam longe, e sempre reclamavam de sua demora. E nunca vou esquecer do último dia, a última partida e a notícia de sua ida fatídica. Foi nas paredes daquela casa em que me apoiei e chorei.

É claro que nem tudo foi dor: na casa de muro branco e portão cinza fiz os primeiros amigos e contei a eles sobre meu primeiro amor. Era uma época em que os amigos da escola passavam o final de semana inteiro lá em casa, e ninguém queria deixar a diversão acabar. Às vezes (quase todas as vezes) eles dormiam lá, em colchões velhos improvisados ou colchonetes vindos da antiga casa. E não havia uma alma sequer que reclamasse de noite mal dormida; tudo o que importava eram as madrugadas em claro que passávamos rindo escandalosamente e sem pudor da infinidade de besteiras que dizíamos uns para os outros.

Ali minhas primeiras grandes transformações aconteceram. Nas paredes estão escritas as histórias das minhas primeiras preocupações, das primeiras ligações de amigos no celular, das descobertas e das omissões, e de quando vivi as primeiras decepções. Nosso teto lastimou as vezes em que abaixamos a cabeça para chorar; ficou curioso para nos ouvir sempre que nos encarávamos no olhar; e riu com a gente quando a cabeça tombava para trás porque o corpo e a alma precisavam gargalhar. O chão sentiu o peso da minha fragilidade e hesitação.

Hoje as memórias são tão delicadas e resistentes quanto era a vida naquele tempo. Mas sei que existem cores e sentimentos fora do lugar. Hoje, as memórias são como a onda que chega branda aos pés do turista que não quer se molhar. O que eu quero é a onda que quebra pesada na costa; a fúria do mar. Quero a enxurrada de sensações e o arrebatamento da alma que se conseguiria se eu entrasse mais uma vez lá. Na casa que me abrigou e me viu crescer.

Ah, o que eu não faria para visitar só mais uma vez o meu primeiro lar...

Galvino Moreno
Enviado por Galvino Moreno em 21/07/2022
Código do texto: T7564576
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