Diálogos infernais
─ Peçonha, que verborreia é essa que nossas escutas clandestinas estão arapongando lá dos quintos do céu?
─ Nada pra se preocupar, Patrão. O pessoal de lá, o velho e seu ordenança, estão matraqueando sobre o tal planeta que é aquela pérola pra onde temos enviado todos os discípulos que doutrinamos noutros mundos. Selecionamos aqueles que se destacam no aprendizado das nossas malévolas ideias e práticas e mandamos pra lá.
─ Deixe de conversa fiada, filho de uma bruaca com um capiroto. O que é que estão tramando?
─ Estão preocupados com aquele país de tamanho continental, onde eles angelicalmente reuniram malditas maravilhas naturais sem fim: solos férteis, muita água boa, clima amistoso, florestas imensas e uma infinidade de seres vivos, mares piscosos, minérios, petróleo...
─ Chega, cão do diabo! Quanta lambeção! Mas me lembro que compensamos essas toleimas todas com algumas mefistofélicas diabruras, não foi?
─ Foi, foi, Patrão. Conseguimos colocar lá aqueles nossos rebentos mais encapetados. Mas eles são só uma parcela menor da população. Apostamos que eles vão conseguir dominar os demais; ou vão seduzi-los, ludibriá-los e aliciá-los ou vão exterminá-los.
─ Diga lá Peçonha, o que temos feito pra apoiar esses nossos arautos da cizânia no seu maléfico intento?
─ Ah, primeiro cuidamos da educação do povo. Décadas de educação insidiosa e odienta pra reverter os resquícios de solidariedade de gente degredada e refugiada de todo o mundo, que lá naquele país encontrava acolhimento e camaradagem. Repetimos e repetimos que ideias de cooperação, justiça social e solidariedade são ou uma utopia inalcançável ou um engodo de falsos idealistas que vão tirar até as casas dos citadinos e as terras dos campesinos. Estão malignamente doutrinados, convencidos daquilo que queríamos. Que é preciso odiar os tais falsos idealistas, e exterminá-los a bala. Essa foi uma grande conquista nossa.
─ Como acreditaram nisso?
─ Ah, acreditaram! Toda a grande mídia está do nosso lado. Pertence aos nossos comparsas. E a mídia demoniza aqueles basbaques utópicos, desmoraliza-os.
─ Que mais fizemos?
─ Manobramos pra transformar revoltas populares espontâneas contra o aumento da tarifa de ônibus em revoltas contra o governo eleito de uma mulher. Foi fácil, com a mídia do nosso lado e o apoio dos nossos comparsas donos do dinheiro, dos jornais e das tevês, das empresas e dos latifúndios. E era uma mulher! Outra grande vitória. Nos apropriamos de uma revolta que no início ameaçou ser legítima indignação do povão. Manipulamos pra que a ira popular enfim derrubasse o governo eleito e desacreditasse a política e a democracia.
─ Desacreditar a democracia? Que danação é essa? Desacreditar o demo?
─ Não, não, Patrão. Democracia não é o governo do demo. É o governo do povo.
─ Malditas palavras que só servem pra tapear.
─ É isso mesmo, Patrão. Temos usado bastante o poder que as palavras têm pra tapear. Aqueles nossos missionários da doutrina da prosperidade estão engambelando o povo simples e pobre com as palavras. Juntam família, liberdade e fé, eles acreditam, nem suspeitam que estão empenhando as almas na nossa causa.
─ Isso tem sido suficiente?
─ Tem sido um bom começo. A mulher presidenta foi deposta, por uma razão diabólica: pedaladas fiscais. Todos os governos anteriores tinham pedalado, os posteriores voltaram a pedalar. Mas só ela foi deposta. Eficácia de nossos comparsas. Agiram muito bem. E os nossos missionários da prosperidade têm conseguido que o povo vote nos nossos devotos, que têm disseminado o ódio e a violência.
─ Decerto não ficou por aí?
─ Nããããão! Tratamos de prender um líder populista sindicalista que estava alimentando esperança no povão. Ele e seus principais aliados, todos pro xilindró. Nem foi preciso apresentar provas. Foi um tal de “ato de ofício indeterminado”, ou seja, inexistente. Foram denúncias não comprovadas, dentro de delações premiadas de bodes expiatórios que delatavam qualquer coisa pra se verem livres de seus próprios malfeitos. Uma façanha dos nossos comparsas juízes, que foram treinados pelos agentes daquele outro país mais ao norte. Que é quem de fato manda naquele mundo todo.
─ E isso bastou?
─ Por segurança, demos um jeito de eleger um pupilo muito especial. Patrão, cuidado com ele. Pode um dia querer vir desafiá-lo por aqui. Também não foi difícil idolatrar e eleger esse catecúmeno. Bastou disseminar mentiras e providenciar uma suposta facada. O povo acredita em tudo. Votou nesse nosso messias, de boa fé. E o caborteiro vem cumprindo muito bem a tarefa que esperamos dele: converter para a malevolência o povo daquele país que ainda acreditava nas coisas da nossa concorrência lá do alto. Veja só, um país de paz, que recebeu refugiados do mundo todo, que escapavam de guerras, perseguições e miséria que inspirávamos em seus países de origem, está virando uma terra de caos, sem lei nem porvir, em que vizinhos agridem vizinhos, familiares e antigos amigos brigam entre si, odeiam-se até a morte. E tratamos de armar os nossos, pra que de fato cheguem à morte. Estamos por aqui já recebendo várias almas que se perderam nesta nossa bem sucedida campanha de trevas, ódio e armamentismo.
─ É, parece que a situação está sob controle. Para o nosso lado.
─ Estamos fazendo a nossa parte. A concorrência lá de cima está tentando reverter nossas conquistas. Mas vai ser difícil pra eles. Além dos nossos cúmplices infiltrados na população, boa parte do povo encanta-se mais com nossas promessas que com aquelas da concorrência. Nossa doutrinação está dando diabólicos resultados.