Coração emprestado?

 

          1. Pode uma coisa dessa? 

              As gazetas, daqui e de Portugal, estão informando que o governo lusitano "vai emprestar", isso mesmo, "vai emprestar" ao governo brasileiro o coração de dom Pedro Primeiro, morto em 24 de setembro de 1834, para as comemorações do Bicentenário da Independência do Brasil. Para mim, desde já, uma cortezia bizarra, pra não dizer grotesca.. Não aprovo.

          2. O coração do nosso primeiro imperador - quando vivo ocupado por tantas mulheres -, no momento está mergulhado no formol, na cidade do Porto, por vontade do próprio marido de dona Leopoldina.

          O resto do corpo está no parque da Independência, no complexo do Museu do Ipiranga, em São Paulo. Portanto, o corpo de Pedro Primeiro está no Brasil e seu coração, (o músculo) em Portugal. Pelo amor de Deus. 

          3.  Pedro Primeiro reinou de 1822 a 7 de abril de 1831. Nessa data, ele abdicou do trono, entregando-o ao seu filho, Pedro II, (com apenas cindo anos de idade) que reinou durante 58 anos. Pedro I , em 1834, voltou para Lisboa. No dia 24 de setembro do mesmo ano, morreu no palácio de Queluz. Pedro II, com a implantação da República, foi deposto e expulso do Brasil ; aí é outra história. 

           4. Sempre manifestei minha repulsa pela exposição de pedaços de cadáver de gente grande, importante, para lembrar-lhe a memória.  Não vejo nenhuma graça nesse tipo de homenagem. Acho até um desrespeito ao defunto. Mas não acontece somente no Brasil: acontece no mundo todo. Darei exemplos. 

          5. Durante décadas, ficaram expostos, mergulhados no formol, no Instituto Médico Legal (IML) de Salvador, o Nina Rodrigues, as cabeças de Lampião, de sua mulher Maria Bonita, e de uma dezena de cangaceiros, conhecidos sicários que, durante anos, levaram o terror ao sertão do Nordeste.

          Muitas das minhas aulas de Medicina Legal eram no IML. Para chegar às salas de necrópsias, passava forçosamente pela sala das cabeças dessepultas .  E protestava. Vibrei, quando a Justiça determinou o sepultamento das cabeças dos famosos marginais, decaptadas  num confronto com a polícia de três Estados, Alagoas, Sergipe e Bahia, liquidando com o "bando".

          6. Em um dos meus passeios pela Europa, parei, com  Ivone, num bela cidade medieval chamada Siena, na linda Itália. Entrei na sua catedral e podia ter me limitado a admirar seu belo piso, pois, que obra encantadora! Levantei a cabeça e descobri, no alto de um altar, em um pequenino vaso florido, nada mais nada menos, do que a cabecinha de Santa Catarina, Santa Catarina de Siena, santa de grande prestígio no Céu.  Mesmo discordando da homenagem, considerando-a uma brutalidade, ajoelhei-me e rezei. 

          7. Visitei Pádua. Estive na  grandiosa basílica de Santo Antônio, junto ao seu túmulo. Fiz minhas orações franciscanas e Ivone as dela, antoninas. Mas não deixei de protestar ao ver de perto, mui bem guardadas, no altar-mor, as cordas vocais e a língua do Martelo dos Hereges.  Para ressautar o valor do insigne orador sacro e do emérito biblista,  para que tirar-lhe a língua e suas cordas vocais? Discordei. 

          8. Pelo que acabo de escrever, sentirão meus leitores que nunca aplaudirei o "empréstimo" do coração de Pedro I ao governo brasileiro, inda mais nesses tempos de  destempero cívico que assola o país. Ao invés do coração do monarca libertador, por que não homenagear a coroa de primeiro Imperador do Brasil, o Imperador do "grito" - "Independência ou morte", ouvido nos quatro cantos do mundo no dia 7 de setembro de 1822. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

           

Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 18/07/2022
Reeditado em 21/07/2022
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