Apenas uma crônica de Natal

Como em tantas outras cidades do Brasil, num dos principais acessos à nossa existe um Cristo Redentor em uma rotatória. É uma das avenidas mais extensas e movimentadas da cidade, provavelmente o trajeto mais utilizado, para se chegar à maior universidade da região, na qual minha filha estuda.

Ontem, voltando pra casa, já na saída da rodovia - passava das dez e meia da noite - nos deparamos com uma incomum lentidão no trânsito. Um pouco mais a frente, pudemos visualizar o motivo da inusitada morosidade: seis carretas de uma famosa marca de refrigerante, enfileiradas, em ritmo de desfile, anunciando a chegada do Natal.

Eram aquelas mesmas, as iluminadas, decoradas e sonorizadas com motivos natalinos. Tinha a casa do Papai Noel, rena, trenó, árvore coberta de neve, caixas de presentes, sinos, guirlandas, muito led, canhões de luz e, claro, a famosa música-tema.

Tudo muito bonito, todo mundo reduzindo a velocidade pra poder apreciar o show um pouquinho mais. Até que as carretas chegaram à rotatória do Cristo, começaram a fazer o contorno e, simplesmente, pararam impedindo a passagem por todos os lados. Os motoristas desceram, as luzes brilhando ainda mais e o som elevado à máxima potência, espalhando acordes de violinos e o tão decantado refrão: O Natal vem chegando, vem chegando o Natal...

Todo mundo obrigado a parar pra acompanhar a apresentação e, com o preço da gasolina ainda mais alto que o volume da música, todos os motores acabaram desligados, possibilitando que se ouvisse as conversas nos carros vizinhos.

Nem tudo tão mais lindo assim cinco minutos depois. O evento acabou por retratar, em alta fidelidade, nosso não tão belo quadro social. Teve gente que saiu do carro pra filmar com o celular. Teve gente que subiu no carro pra filmar com o celular. Alguns só observavam, outros aplaudiam, assobiavam, gritavam.

Crianças correndo pra chegar mais perto do bom velhinho, papais e mamães correndo atrás pra evitar que os anjinhos fossem atropelados pelas motos de delivery de comida, os únicos veículos que conseguiam passar entre os caminhões.

Mas teve um pessoal que não estava curtindo nada ficar compulsoriamente tolhido de seu direito de ir e vir. Já se iam dez minutos de apresentação, o tal refrão repetido a se perder a conta, tinha cidadão - inclusive este - exausto, com fome, com sono, que só queria chegar em casa e poder recuperar o corpo pra poder começar a remar de novo na manhã seguinte. E, aos quinze minutos, uma sinfonia de buzinas, em perfeita desarmonia, já competia em pé de igualdade com a melodia do evento.

No carro ao lado, uma mocinha alterada gritava que nunca mais tomaria aquele refri na vida, contando com apoio imediato da mãe, que sempre avisou que aquela porcaria era um veneno cancerígeno, uma bomba de açúcar, um ácido que desentope encanamentos...

No da frente, um senhor indignado exigia a presença de alguma autoridade capaz de efetivar as providências necessárias para promover a imediata desobstrução da via pública ocupada sem autorização.

- Cala a boca, velho xarope! Não tá gostando, volta pro seu carro e dorme até acabar!

Era o rapaz do carro de trás, alto, forte, símbolo tribal, daqueles que ninguém sabe explicar a origem, tatuado num dos braços, águia em pleno voo no outro, muita atividade física, pouca cerebral.

- Velho só vive pra reclamar!

O senhor até iniciou um discurso sobre o respeito aos idosos, informando ao bombado que a terceira idade também chegaria pra ele, que um dia todos aqueles músculos murchariam, mas teve sua atenção desviada, como todos os presentes, para um jovem que começou a gritar palavras de ordem bem em frente à carreta da casa do Papai Noel.

- Abaixo o consumismo! Morte ao capitalismo!

Em rápida resposta, uma pergunta de uma senhora.

- Você tem ideia de quanta gente trabalha nessa empresa, rapazinho?

- É multinacional, minha tia! O grosso do lucro vai pra fora do país. Chega de exploração do imperialismo!

Bastou pra mais um entrar na discussão.

- Bando de vagabundos comunistas, tão fazendo o que no Brasil? Se mandem pra Cuba, pra Venezuela, pra ver como é bom viver sem liberdade!

Então alguém despejou o combustível.

- Fora Bolsonaro!

E outro riscou o fósforo.

- PT nunca mais!

Rapidamente estavam formados dois grupos, coincidentemente posicionados conforme suas convicções ideológicas, à direita e à esquerda da estátua do Cristo.

- Ditadura militar assassina!

- Assassinos são vocês, que defendem o aborto!

- Mais que assassinos, são genocidas todos os que concordam com esse presidente que enrolou uma eternidade pra comprar vacina. Morreu muita gente de COVID por culpa dele! Antivacinaro!

- Morreu muita gente na miséria, por culpa dos governadores e prefeitos que obrigaram a população a ficar trancada em casa!

- Ele não tinha razão, não era uma gripezinha!

- E que razão tem vocês, corruptos hipócritas? Quebraram o país pra tentar impor um regime de esquerda disfarçado de democracia!

- Hipócritas são vocês, que se dizem a favor da vida, mas querem a população armada!

- É pra se defender de governos que se dizem progressistas, mas são capazes de recorrer ao terrorismo pra se manter no poder!

- Quem faz isso é a direita fascista, que prende e mata quem ousa...

Não terminou a frase, alguém atirou a primeira pedra. E acertou em cheio a cabeça do rapaz, que caiu sangrando. A reação dos que estavam ao lado dele foi instantânea, avançaram com fúria contra os rivais.

E começou a pancadaria.

Uma cena como as das antigas guerras em que os dois exércitos, alinhados em frente de batalha, partiam para o ataque sem nenhuma organização, sem estratégia, sem planejamento, movidos somente pelo ódio do inimigo. Gente correndo em todas direções, quem apanhava tentando escapar, quem agredia perseguindo pra bater mais. Mulheres gritando, crianças chorando, em contraste com os acordes dos violinos, melancólica trilha sonora para a absurda barbárie que se inflamava, em progressão geométrica, rumo a um trágico desfecho.

Uma demonstração de intolerância convertida em rancor em seu mais deteriorado grau de impureza. Quem havia descido do carro voltou depressa, se trancou, se escondeu o máximo possível e rezou, não tinha como fugir dali, as carretas permaneciam inertes, fechando as passagens, sabe-se lá onde estariam os motoristas.

De repente, um estampido.

- É tiro!

Abriu-se um vão entre os dois grupos, resultado de um reflexo instintivo de cada um dos arruaceiros, provavelmente, num primeiro momento, para verificar se havia sido atingido e, em seguida, para tentar identificar quem havia sido baleado.

E então, mais um disparo.

De pé, em cima do carro, o senhor maltratado pelo rapaz bombado, com um trinta e oito na mão, apontado para o céu. Quando o grandão viu quem era, se jogou no chão e se arrastou pra debaixo do carro ao lado. No dia seguinte, a imprensa informou que se tratava de um major aposentado.

- Chega! Parem agora com essa barbárie! Que loucura é essa? Vão acabar se matando! A próxima bala vai para quem erguer a mão para...

Foi interrompido de novo, agora pelas sirenes dos carros da polícia, que foram obrigados a estacionar do lado de fora do anel formado pelas carretas na rotatória.

Mas não foi difícil pro Choque enquadrar aqueles que, inacreditavelmente, nem perceberam a chegada dos policiais. Estavam tão absortos no combate que nem as luzes dos giroflex, nem os sons emitidos pelas viaturas foram capazes de trazê-los de volta do vale da morte.

Outros também ficaram, mas não por vontade própria, simplesmente não conseguiram fugir correndo por entre os carros, como a maior parte dos brigões, por estarem machucados demais pra ficarem em pé. Acabaram levados pelas ambulâncias que chegaram logo depois.

E finalmente aquela fervura surreal começou a arrefecer.

Os motoristas das jamantas reapareceram, os leds foram apagados e a música desligada. Os caminhões partiram em fila, lentamente, em triste procissão, liberando a passagem.

Som de todos os motores ligados ao mesmo tempo, carros e motos finalmente se movendo, também formando um cortejo, não menos fúnebre que o das antes tão alegres carretas. Dentro de cada um deles, cidadãos em choque, custando a acreditar que tudo aquilo tinha sido real, tentando entender como a festa havia se transformado em guerra.

Passamos pelo Cristo.

Caramba, ele assistiu tudo!

Pior, será que durante toda aquela histeria ninguém se deu conta de que Ele tava ali? Logo Ele, o aniversariante! E que presente deram pra Ele!

Como é que Ele suportou assistir aquele show de horrores? Só sendo Deus mesmo...

Podia ter feito alguma coisa pra parar aquela gente, sei lá, de repente assobiar, bater umas palmas, congelar a cena, botar ordem na bagunça.

- Parou, pessoal! Que parte do amar ao próximo como eu vos amei vocês não entenderam? Façam a conversão e todo mundo bora pra casa, revisar o que ensinei.

Mas, pensando melhor, apesar de ser Deus e, evidentemente, ser onipotente, o Senhor também é obediente. Aceitou morrer na cruz, cumpriu o combinado com o Pai, foi pro sacrifício, o maior, mais intenso, mais dolorido: absorver o peso do pecado de todo mundo ao mesmo tempo. E, então, sem mais nem menos, ia deixar de respeitar a regra do livre arbítrio?

Agora, a tristeza, essa deve ter sido inevitável. E olha que, mesmo com toda a decepção, Ele ainda deve ter feito um esforço, pelo seu amor infinito, pra tentar amenizar a gravidade da ofensa. É que ninguém tava vendo - tava todo mundo se matando - mas em algum momento Ele deve ter levantado os olhos pro céu e repetido o que já tinha dito na cruz.

- Perdoa eles, Pai! Eles continuam sem saber o que fazem!

Será que é esse o problema?

A gente faz quase nada e ainda acaba errando grande no pouco que faz. A gente continua insistindo em pedir pra que Ele faça alguma coisa.

Ele já fez tudo o que tinha que fazer, encarnou, andou entre nós, ensinou tudo direitinho e, em caso de dúvida ou esquecimento, deixou tudo registrado, disponível pra consulta a qualquer momento.

Ah, e ainda fez o que só Deus pode fazer. Algumas vezes, como recurso pra fazer o pessoal cabeça-dura entender que Ele realmente era o Salvador, outras simplesmente movido pela compaixão. E até mesmo sem querer, provocado apenas pela fé de quem teve a capacidade de reconhecê-lo.

Comprou briga com os poderosos, escandalizou a elite religiosa hipócrita, questionou a organização social injusta, preferiu conviver com os pobres, com os pecadores, os doentes, as mulheres, as crianças, os excluídos.

Morreu na cruz, redimiu o pecado de todo mundo, ressuscitou e ainda ficou mais um pouquinho cá embaixo, pra convencer aqueles que ainda vacilavam na fé, mesmo tendo visto, ouvido, tocado, pra reforçar o mandamento do amor, pra nos deixar a paz, pra soprar sobre nós o espírito santo, amparo e ânimo pra sempre nos lembrar que Ele continua entre nós, mesmo que não possamos e até quando não desejamos vê-lo, ouvi-lo, tocá-lo.

Quer que Ele faça o que mais?

Ele agora está só no aguardo.

Apesar de tanta coisa errada que a gente insiste em alimentar, os nossos pecados de estimação, Ele não desiste de nós.

Apesar do nosso egoísmo, da nossa indiferença, da mentira, da raiva, da vaidade, da incredulidade, da intolerância, da falta de empatia, da nossa inércia e da nossa resistência em amar o nosso irmão, Ele continua de braços abertos, só que não mais pregados na cruz.

É a gente que não pode esquecer que a razão da celebração de 25 de dezembro é o nascimento Dele.

E correr pro abraço que Ele tanto anseia!