MEU AUTISMO: UM PRECONCEITO QUE COMEÇA DENTRO DE CASA (E CONTINUA FORA)
Crônica de Gustavo do Carmo
Descobri que tenho autismo somente aos 40 anos (farei 45 em setembro), depois que entrei em depressão por causa da demência senil da minha mãe (aparentemente súbita) e do sucesso de uma ex-colega de pós-graduação, que começou aparecer no RJTV com frequência, mas hoje trabalha em Brasília, e me esnobou quando eu a procurei.
Até então, acreditava que eu era apenas um retardado, como dizia (e ainda diz) a minha irmã. Confesso que, até os 12 anos, ainda brincava de carrinhos e bonecos de super-herói. Aos 15, jogava botão e narrava os jogos (sozinho, na maioria das vezes). Aos 18 comecei a colecionar carrinhos em miniatura. Eu poderia estar frequentando boates com garotas, mas estava no shopping comprando carrinho numa tabacaria com a minha mãe e minha irmã.
E foi com esta idade que eu entrei na faculdade de jornalismo. Tive muita dificuldade. Abandonava as aulas e saía para passear pela Praia de Botafogo. Às vezes, caminhava até o Aterro do Flamengo. Repeti duas matérias logo no primeiro período. Mais uma no segundo (de bobeira, porque não me preparei para uma apresentação de trabalho em grupo), uma no terceiro e mais duas no quarto (uma delas pela segunda vez).
Pensei em abandonar a faculdade. Mas um rapaz, que eu pensava ser o meu melhor amigo, me colocou nos trilhos e me incentivou a estudar e me dedicar ao curso. Fiz algumas matérias no turno da tarde e até da noite para me formar no tempo previsto. Em muitas, passei raspando ou graças a bondade do professor.
Sofri muito bullying dos meus colegas desde o primeiro grau (que hoje é chamado de ensino fundamental), passando pelo ensino médio e pela faculdade. Nesta última, já ouvi que eu era burrinho, terrorista, que eu parecia pobre usando camisa social e blazer para viajar de avião. Hoje, o mesmo cara que teceu este último comentário é comentarista de um canal de TV por assinatura. Este ainda liderou um grupinho que tentou me deixar em coma alcoólico. No antigo segundo grau me comparavam com o professor de química. Não pela inteligência dele, mas pela aparência nerd e desengonçada, o rosto marcado e a boca caída. As garotas, claro, me rejeitavam. Uma me odiava. Outra me evitava.
De volta à faculdade, uma colega (por quem nunca me interessei) barrou a minha entrada em um trabalho de grupo, com total apoio do rapaz que me colocou nos trilhos (minha primeira decepção com ele). Só porque a nota seria em grupo, eles preferiram me vetar. Eles se justificam dizendo que foi por causa da minha falta de preparação na apresentação daquela matéria que eu repeti no segundo período. Para mim, foi um preconceito. Tranquei a disciplina e fui fazer depois com outra professora. Outra, que se tornaria nora de um famoso cantor, tentou me vetar em outra matéria, mas não conseguiu.
Logo que me formei, aos 22 anos, comecei a receber pressão psicológica do meu pai para arrumar emprego e, principalmente, fazer concurso público. Minha mãe queria até que eu fizesse prova para a Comlurb. Eu queria trabalhar só com jornalismo. Ou com publicidade, curso que comecei a fazer um ano depois de me formar em jornalismo. Minha irmã chegou a me chamar de vagabundo, dizer que eu não gosto de trabalhar (isso ela diz até hoje e meu pai também) e a desejar me ver na sarjeta.
No segundo curso, também não tive sucesso. Participei de algumas entrevistas e não passei em nenhuma. Em uma cheguei a passar vexame por não saber nada. Estressado, comecei a ser grosseiro quando sentia que eu não passei. Uma colega chegou a me chamar para uma entrevista no mesmo dia em que eu ia viajar para realizar o sonho de visitar uma fábrica de automóveis. Pedi para ela adiar a entrevista. A muito contragosto ela concordou. Viajei, mas não curti o passeio, de tão culpado que eu estava. Cheguei na entrevista, ela me viu e fingiu que não me conhecia. E ao descobrir que não havia vaga garantida nenhuma, que eu seria mais um candidato (ou desculpa para me descartar), me senti enganado e soltei os cachorros contra ela e a moça que me entrevistou. A mulher deve me odiar até hoje.
Me formei em publicidade, mas o fracasso e as cobranças familiares continuaram. Meu pai ameaçou a me deserdar e cortar o meu dinheiro, com total apoio da minha irmã, se eu não fizesse o concurso da Unirio. Tive que fazer. E ele também me obrigou a estudar. E foi imprimindo material para estudar para um concurso seguinte, em Macaé, que eu passei mal e descobri que estava com apendicite e tive que operar.
Ele também começou a me cobrar para fazer uma pós-graduação. Eu até queria fazer e cheguei a me matricular numa de telejornalismo. Mas, rispidamente, ele cismou que eu tinha que fazer uma na área de educação, para que eu seja professor (eu ainda preciso aprender e ele já queria que eu ensinasse) e ameaçou a não pagar o curso. Tive que fazer de Gestão de Cultura.
Foi nesta época que o meu pai começou a fazer tortura psicológica sobre a nossa situação financeira. Mandava economizar e dizia que estava falindo, mesmo tendo dinheiro para pagar as contas normalmente. Comecei a ter discussões ríspidas e violentas com ele. Chegava a chorar e tentei o suicídio várias vezes. Inspirado por um colega da pós que mandou mensagem em grupo dizendo que estava abandonando o curso por dificuldades financeiras, fiz o mesmo. Mas me incentivaram a continuar.
Cheguei a mandar os originais do meu romance (aliás, ser escritor já era um sonho que eu tinha desde a infância e comecei a escrever em 1998) para o coordenador do curso de gestão cultural, que gostou e me incentivou a publicar. Por sorte, minha mãe conseguiu uma correção de aposentadoria e ganhou 15 mil reais. Parte do dinheiro ela investiu na publicação paga do livro por uma editora de São Paulo.
Apesar da alegria de fazer uma festa de lançamento para o livro com muitos convidados (a grande maioria de parentes e amigos da família) e viajar a São Paulo algumas vezes, para assinar o contrato da edição, impressão e acompanhar o pré-lançamento na Bienal do Livro de lá, começou a decepção.
A editora sequer mandou os donos para cá. Uma funcionária da Saraiva, livraria onde foi realizada a festa, que inclusive fez faculdade comigo, ficou encarregada. Dias depois, eles já esconderam o livro no site. Dos meus colegas da pós, só foram duas. O tal ex-colega de faculdade que me botou nos trilhos também foi, mas isso depois dele já ter se afastado de mim. E depois se afastou de novo.
Aí tive que me virar para vender. Como autista que eu sou, mas ainda não sabia, tentei vender, mas não consegui. Levei uma bolsa cheia de livros e só vendi um. Cheguei a chorar no corredor do prédio da Estácio. Anos depois, consegui vender dois na outra pós-graduação que eu fiz, a de telejornalismo. Um deles para uma hoje apresentadora da Record TV.
Sem saber que eu tinha autismo, acabei desenvolvendo orgulhos e preconceitos. Minha mãe queria que eu montasse uma banca na Festa Literária Internacional de Parati, a tal FLIP, mas, além de achar muita humilhação, achava que isso era obrigação da editora, que já havia me abandonado. Uma tia queria que eu desse o livro de presente. Mas não dei. Ela morreu de câncer sem ler.
Acabei brigando e rompendo com os meus colegas da pós. Mas, antes, fiquei do lado deles e excluí o tal coordenador que me incentivou do grupo na internet. Ele havia sido demitido pela faculdade porque a ex-mulher dele estava processando a Estácio, queria levar todos para um curso de extensão em outra instituição. Me arrependi de ter continuado com eles e de ter traído o coordenador.
Entre a pós de Gestão de Cultura e Telejornalismo que fiz depois, andei cursando algumas oficinas literárias e de roteiro para cinema na Cândido Mendes, no SESC e na Casa da Gávea. Fiz amizades apenas momentâneas. Fiz uma oficina de contos sobre a Tijuca.
Por influência de uma colega dessas oficinas, consegui uma editora que bancou o lançamento do meu segundo livro, desta vez uma coletânea de contos. Só que eles boicotaram totalmente o meu livro antes e depois da festa de lançamento, que teve igualmente a presença de parentes e alguns amigos. Mas foram poucos, porque só me entregaram os convites na véspera da noite de autógrafos.
Em ambos, o meu pai comprou quase todos os exemplares dos livros com o pretexto de ajudar. mas acabou atrapalhando, pois os livros ficaram sem distribuição (aliás, o segundo livro foi feito tão nas coxas que eles não se deram o trabalho de obter o ISBN e o registro na Câmara Brasileira do Livro). Senti preconceito no lançamento dos dois livros.
Ainda me sentindo humilhado com tanta imaturidade, resolvi consultar (sozinho) um psiquiatra para ver o que eu tinha. Achei que era déficit de atenção. Depois de uma cintilografia, a médica disse que eu não tinha nada. Indignado, resolvi ir embora, mas, não lembro do que eu falei para ela mudar de ideia, passar Ritalina e me encaminhar para a psicóloga. Achando muito caro e sem retorno, abandonei o tratamento.
Depois me consultei com outra psiquiatra e tomei mais remédios. Me consultei com mais psicólogas. Uma delas chegou a dizer que eu era indisciplinado.
Enfim, entrei na tão sonhada pós-graduação em telejornalismo, coordenada pela filha da saudosa Edna Savaget. Fiz mais amizades momentâneas, incluindo a repórter esnobe e ex-carioca da Globo Brasília, mas me estressei, rompi com todos e abandonei o curso faltando apenas duas matérias.
Desde 2004, paralelo aos cursos e oficina, aos tratamentos psicológicos e às cobranças do meu pai, me dedico aos meus dois blogs: este Tudo Cultural e outro sobre carros (www.novoguscar.blogspot.com). Mesmo raramente tendo retorno financeiro, é o meu trabalho. E sem o retorno financeiro não sou respeitado pelo que eu escrevo, principalmente por parte da minha irmã e do meu pai, que acha que eu tenho que escrever para o "povão" e diz que eu optei por não trabalhar.
Em 2010, li o livro "Olhe nos meus olhos", no qual o autor John Elder Robinson relata a sua Síndrome de Asperger, e me identifiquei totalmente com ele. Mas ninguém me dava importância. Nem minha mãe.
Tentei morar com ela em Cabo Frio em 2011 e depois em 2018. Mas acabava tendo que voltar para socorrer o meu pai que perdeu a irmã, cuidar da reforma do apartamento da minha irmã e fugir do vizinho esquizofrênico do andar de baixo de Cabo Frio, que chegou a tentar arrombar a minha porta. Minha irmã me deu a missão de cuidar da minha mãe, mas falhei.
Voltei com ela para Cabo Frio e lá ficamos de janeiro a maio de 2018, mas ela começou a ter pressão alta com muita frequência. O remédio que ela tomava parou de ser fabricado e a levei em dois cardiologistas para tentar encontrar um novo. Alprazolam e Patz foram os novos medicamentos receitados. Um médico passou um exame de urina e tinha dado sangue. O médico recomendou a procurar um ginecologista para ela, mas não consultei. Fiquei com medo de ser câncer. E da minha irmã nos arrastar de volta ao Rio para ficar em Bonsucesso, em um prédio só de escadas e já sem hospital por perto (o que tinha ao lado já estava fechado havia dois anos e seria demolido meses depois para virar estacionamento de uma loja de doces), e nunca mais voltar.
Teve dias em que eu é que tive que ir ao médico. Cheguei a ter crise de labirintite, enjoo, um marimbondo me mordeu e depois um furúnculo próximo à axila, que me deu até febre. Ela me acompanhou à dermatologista. Uma semana depois, ela passou mal. Chegou a desmaiar. Levei ela a um hospital que não atendia pelo meu convênio porque o que atendia poderia interná-la e transferi-la de volta para o Rio por falta de vaga (como quase aconteceu no ano anterior quando ela teve uma pressão alta persistente) e eu estava sozinho com a minha mãe e não podia deixar minhas coisas em Cabo Frio.
Não sei se foi erro na medicação ou já era sintoma da infecção urinária, mas assim que tomou Vornau com Dipirona, minha mãe começou a ter uma convulsão, gemendo e falando até em francês. Quando passou o delírio, ela já estava fora de si e não se lembrava mais de ninguém. Já estava completamente fora da realidade. Queria sair. Procurava pêlo de cachorro na cama do hospital. Foi internada no CTI e precisou ser amarrada para não se levantar.
Avisada por mim, minha irmã e minha prima foram até Cabo Frio e me culparam por ela ter ficado com a demência que ela tem até hoje. Voltamos para o Rio. Meu pai, a contragosto, resolveu contratar uma empregada e a minha irmã contratou uma empresa cara de cuidadoras que se revezam até hoje. Ela só voltou para Cabo Frio em fevereiro de 2019. Só levamos uma cuidadora que ficou duas semanas com a gente. Mas deu tanta confusão com as outras que ficaram que nunca mais a levamos para lá.
Aqui no Rio, passei a tomar os tais remédios que tinham passado para ela. Prioritariamente para dormir. Mas algumas vezes para tentar me matar mesmo. Parei de comer. Emagreci bastante. Entrei em depressão. Meu pai e minha irmã decidiram me levar ao psiquiatra, indicado pela minha prima, cujo filho tem o mesmo problema que o meu.
E finalmente, o médico me diagnosticou com a tal Síndrome de Asperger. Meu pai esteve ao meu lado na consulta, já que a minha mãe, agora necessitando de cuidados e fora de si, não pode mais estar comigo. Ele ainda perguntou para o médico se poderia me dar umas "porradas". Sem graça, o psiquiatra pediu para ele ser mais compreensivo. Meu pai prometeu pagar o tratamento com a psicóloga. Mas passou um tempo e não cumpriu nenhuma das duas promessas.
Nunca foi compreensivo e começou a me enrolar para pagar a mensalidade da psicóloga. Não deixou que eu assinasse o contrato de prestação de serviços e me fez atrasar várias vezes o pagamento. Até que eu me cansei da minha psicóloga defendendo a hipocrisia da minha ex-colega de pós-graduação e desisti.
Meu pai continuou me cobrando. Agora para mudar minha alimentação. Quis porque quis que eu procurasse uma endocrinologista. Achava que a minha imaturidade era por causa da tireóide. Até me indicou uma que dava opinião na Rádio Tupi. Fui lá, me consultei com ela, fiz os exames que ela pediu e, enquanto esperava o resultado, veio a pandemia e... a endocrinologista morreu. De Covid. Foi uma das primeiras vítimas.
Minha irmã continuou me cobrando para cuidar da minha mãe. Marcar médicos e exames para ela. Tratar da prova de vida dela em plena pandemia. Mesmo suspensa, ela queria que eu fosse ao banco e ficasse perguntando, enquanto ela tem secretária e advogado para fazer isso e também uma procuração. Não que eu seja incapaz, mas ela exige coisas que eu não sei fazer. Quando disse que eu sou autista, ela me refutou.
Não sou um autista severo, daqueles que não suportam barulho e contatos físicos, mas não suporto mais sermões e cobranças. Também não sou de procurar interação. Se eu faço é por extrema necessidade. Não sou incapaz de fazer as coisas, mas preciso de uma orientação antes, porque não percebo ironias, metáforas e nem jogos psicológicos, coisas que a minha irmã e meu cunhado fazem muito comigo e não suporto. Fico extremamente incomodado com excesso de regras, principalmente da língua portuguesa. Por isso, não escrevo tão bem como deveria por ser um jornalista formado. E também tenho dificuldade de me expressar. E de falar também. Parece que eu estou mentindo e querendo levar vantagem.
Tudo bem que, às vezes, até mereço umas chacoalhadas, mas na maioria das vezes, preciso de conforto, apoio e compreensão, o que nunca tive aqui em casa, principalmente do meu pai (que esteve presente na consulta com o médico que me diagnosticou) e da minha irmã. Ambos querem me educar com tratamento de choque, na marra. Não sei dizer se a minha mãe seria mais compreensiva. Acredito que não.
É essa a minha vida de autista. Sofrendo preconceitos dentro da minha própria casa, pela minha família, mesmo já estando cientes. E fora de casa também. Desde que eu me entendo por gente.