A história da minha mãe, da mãe dela e do avô nazista (e de uma parteira, uma empregada e um médico humanos e corajosos)

Alemanha, final da Segunda Guerra Mundial. Hitler já havia se matado. Os aliados começaram a invadir o país. Antes de ser preso, um oficial do exército nazista enviou toda a sua família para o Brasil. Levado para a França com seu irmão, também militar, conseguiu fugir antes de ser julgado e veio para cá para reencontrar a esposa e os filhos. Por precaução, escolheram

uma cidade pequena no interior de São Paulo, bem distante da capital: Presidente Prudente. Início de uma nova vida.

Após alguns meses, surgimento de uma vida nova. A filha mais velha vivia um amor impossível, inaceitável: havia se encantado com um árabe. O pai jamais aceitaria. Mas o namoro clandestino acabou em gravidez. Quando não mais se

pode ocultar a barriga, a verdade veio à tona. O pai mandou a moça para um sítio, para evitar o escândalo. Pagou para a parteira matar a criança. Infelizmente teria nascido sem vida. O sangue ariano nunca seria maculado. Dor e tristeza. Enterro de caixãozinho branco. Vazio.

A parteira não matou a menininha. Era comadre de um casal que acabava de ver interrompido, pela quarta vez, o sonho da maternidade. Já tinha perdido a esperança de poder trazer a luz um filho da amiga. De repente, se viu diante da oportunidade de salvar uma vida e, ao mesmo tempo, oferecer o presente tão desejado a quem já havia passado por tanto sofrimento. Humana e corajosa, entregou a criança para o casal embrulhada em papel de jornal.

Dorival Caymmi fazia estrondoso sucesso. A bebê recebeu o nome da música: Marina. Aquela que é do mar. Nome típico brasileiro para uma menina nascida da união de extremos, encontro único que nunca mais se repetiria. Essa criança era minha mãe.

Cresceu filha de pedreiro e de dona de casa. Ele se tornou mestre de obras. Mestre mesmo. Sabia mais de construção que qualquer engenheiro ou arquiteto. Trabalhava com conhecimento na mente e mão na massa. Conquistou a confiança de um grande empresário da cidade. Não ficou rico, mas conseguiu fazer o melhor para a filha. A menina estudou em colégio de freira, falava francês e latim, tocava violino. A moça passou em pedagogia na UNESP. Professora. Aprovada em concurso público, foi dar aula em escolinha na zona rural. Começou a namorar. O felizardo era o vizinho. Se conheciam desde a infância, quando a família dele chegou do Paraná. Ambos já haviam tido seus namoricos, mas de repente...

E a história se repetiu. O pai não aprovou. O rapaz não estava à altura de sua filha: técnico em contabilidade, sem curso superior, emprego mediano. Tanto investimento pra um casamento sem futuro. E a história se repetiu mesmo. Mais uma nova vida a caminho. Apesar do noivado em curso, o pai fechou as portas da casa para o futuro genro. Se sentiu traído. Por ambos. Gravidez antes do casamento era imperdoável, vergonha para a família, decretação de extinção da pretensão de uma posição social relevante.

Casaram com a benção somente do padre. Foram morar de aluguel, na última casa de uma rua sem saída. Início de vida nova. E a vida que vinha chegou. E trouxe surpresa. O menino nasceu saudável, o inesperado foi a visita do avô. Em algum momento deve ter caído a ficha de que, guardadas as devidas proporções, estava agindo com sua filha da mesma forma que o nazista fizera. E recalculou a rota. Naquele dia, ali mesmo no hospital, se desfez do orgulho pra abraçar o pai do seu neto.

- Vamos esquecer o que passou. Posso te ajudar a criar esse moleque?

Esse menino era eu. Depois veio minha irmã. Crescemos filhos de contabilista e professora. Vida tranquila, sem aperto, mesa farta, festa de aniversário, presente de Natal, viagem pra praia. Educação de excelência em casa, conhecimento de ótima

qualidade fornecido por escola pública. E o mais importante: amor. Sempre fomos muito amados por nossos pais. Cada um expressava de seu jeito. Bom, ele praticamente não expressava, mas sentia. Ela expressava demais.

Só teve uma parada mais ou menos: nunca contaram pra gente a história da minha mãe. A família toda sabia, mas ninguém tocava no assunto. Era expressamente proibido. Nunca houve um papo reto. Meus avós nunca contaram pra minha mãe que ela havia sido adotada. Ele infartou, não teve tempo. Ela, antes de morrer, apontou pra barriga, depois pra minha mãe e fez um sinal de negativo.

Só então resolveram abrir a história pra gente. Só então minha mãe se sentiu confortável pra procurar a mãe biológica. Tinha uma tia que sabia tudo da família dos alemães. Sempre tem uma tia que entrega o serviço completo. Haviam mudado pra Londrina, no Paraná. Só cento e oitenta quilômetros, duas horinhas. Ela tinha o contato do irmão de minha avó.

Ele contou que ela havia se casado, teve três filhas, ficou viúva, já estava com setenta e cinco anos. Mandou várias fotos da família de quando ainda viviam na Alemanha. Ao colocarmos lado a lado fotos de minha avó e de minha mãe com mais ou menos a mesma idade, restou inegável o parentesco. Desnecessário o exame de DNA. Não menos impressionante a semelhança entre meu bisavô e eu. Caramba, bisneto de nazista! Confesso que passei a conviver com um certo medo de mim

mesmo...

Marcamos o encontro. Minha avó não queria que as filhas soubessem naquele momento. Então o local escolhido foi a casa do tio, porque ela morava com uma delas, que inclusive estaria viajando naquele dia. Ocasião perfeita! E aconteceu: mãe e filha se conheceram e se reconheceram depois de cinquenta e oito anos. Coisa de quadro de programa de Luciano Huck: se abraçavam, choravam, sorriam e subitamente se afastavam, pra poderem olhar uma pra outra e confirmar que o que estavam vivendo era real. E então voltavam a se abraçar, choravam e sorriam e se largavam novamente. Era surreal!

Todo mundo sempre diz que as maiores emoções que vive são as de quando se casam, quando se tornam pais, avós e até de quando perdem alguém muito amado. Mas essa realmente foi única. Principalmente porque não houve questionamentos, nem cobranças, nem satisfações formais. Simplesmente ficaram irrelevantes diante da intensidade do momento. Não fazia mais sentido desperdiçar tempo com confrontação de versões, esclarecimentos, desculpas. Mesmo porque

ninguém teve culpa.

Mas minha avó fez questão de dizer que nunca havia aceitado a alegação de que a criança teria nascido morta. Lembrava-se perfeitamente de ter ouvido o choro do bebê. E acrescentou que durante todos esses anos, não houve um único dia em que não tivera rezado pela filha. E finalmente decretou o final de uma angústia que durou uma vida inteira que, no entanto, não havia sido suficiente pra apagar o sotaque germânico:

- Agorra já posso morrer em paz, minha querrida!

Tudo muito lindo, tudo muito perfeito. Até que minha avó encafifou de levar a gente pra conhecer a casa dela. Fez questão, fez manha, fez de tudo. Não teve jeito de dobrar a velha. Ela morava em apartamento, entramos com o carro no prédio, estacionamos na vaga do morador, na maior tranquilidade. A filha estava viajando. Com exceção do porteiro e da empregada, ninguém nunca ia ficar sabendo.

Minha mãe passou um dia inteiro com a mãe dela, mas sempre chega a hora em que a carruagem volta a ser abóbora. E minha avó não queria de jeito nenhum que aquele baile terminasse. Segurou a gente o quanto pôde, só pra dar tempo mesmo de minha mãe poder conhecer a irmã dela. A mulher chegou da viagem, perguntando quem era o dono do Classic que tava ocupando a vaga dela na garagem. Minha avó lançou mão daquela história manjada da prima distante que ninguém da família conhece, minha mãe acabou obrigada a mentir pra irmã no primeiro encontro e saímos praticamente em fuga, mas já sentindo o cheirinho de arroz queimado.

Naquela mesma noite minha avó abriu a verdade pra minha tia. A reação foi a pior possível. Proibido qualquer contato com minha mãe. Achou que o encontro havia sido motivado por interesse financeiro. Logo minha mãe, totalmente desapegada do material. No fim das contas, mãe e filha acabaram separadas mais uma vez. Minha avó foi impedida de viajar, minha mãe virou persona non grata na família, a filha bastarda jamais seria aceita. História que se repetia.

O máximo de contato que conseguiam eram telefonemas escondidos, com ajuda da empregada, humana e corajosa. Num deles, minha mãe resolveu perguntar sobre o pai dela. Minha avó se limitou a dizer que aquele Jorge não passava de um turco safado, mas que havia sido o grande amor de sua vida. E o nome foi a única referência que conseguimos sobre meu avô.

Em outra conversa, minha avó contou que o pai dela tinha se matado. Meteu uma bala na cabeça. Talvez por não ter conseguido suportar a ideia de ter que conviver em pé de igualdade com os impuros, inferiores, num país que é resultado da mistura de tudo com todo mundo. Talvez pelo orgulho ferido de ter defendido um ideal que não prevaleceu. Talvez pela covardia pra reconhecer que a teoria era falha e abjeta. Talvez pelo remorso da crueldade de ter mandado matar a própria

neta. Provavelmente por todos os motivos.

Depois de alguns meses minha avó ficou doente. Coração cansado. Estava na UTI. A empregada ligou pra avisar. E pra transmitir o pedido: a mãe queria ver a filha só mais uma vez. Pra se despedir. Missão impossível. Chegamos no hospital antes do horário de visitas. Minha irmã também foi, pra tentar conhecer a avó. Pedimos pra falar com o médico. Contamos a história. Ele, humano e corajoso, entendeu, permitiu que as duas entrassem por dez minutos.

Fiquei esperando na recepção. Vinte minutos e nada. E pra estourar com a adrenalina de vez, quem chegou pra visitar a mamãe? Ah, mulher que tem o dom de aparecer nos momentos mais inoportunos! Foi informada que já havia alguém lá dentro. Entrou também. Era médica, trabalhava lá, tinha livre acesso. Visita clandestina que tinha tudo pra acabar na delegacia. Mais vinte minutos e saíram todos. Em prantos, inclusive médico e enfermagem.

A mãe pediu às filhas que vivessem em harmonia dali em diante. Só assim ela poderia descansar em paz. E mais um conflito acabava sendo resolvido no hospital - história que se repetia - desta vez motivado por uma partida, que se concretizou duas semanas depois.

E realmente chegou ao fim a desavença. Mesmo porque não houve convivência. Nem oportunidade se deram as irmãs pra novos desentendimentos. Minha mãe não voltou mais a Londrina depois do enterro de minha avó. Nunca foi convidada. Provavelmente o receio de uma reinvindicação de herança deve ter sempre falado mais alto quando se cogitasse sobre qualquer iniciativa de aproximação.

E o tempo, que não aceita desaforo, se encarregou de encerrar de vez a história. Só três anos. E minha mãe também partiu. De súbito, o coração resolveu parar. Foi se juntar a mãe, desta vez num lugar onde ninguém pode mais separá-las. Estão lá, onde não há mais medo, não há culpa nem mentira, não há egoísmo nem cobiça, não há distinção entre superiores e inferiores, puros e miscigenados, olhos azuis e pele marrom.

Estão em paz, rindo, se abraçando e, exercendo a indelével função de mãe, continuam olhando por nós e pedindo a Deus, a Jesus, ao Espírito Santo, a Nossa Senhora, aos anjos e a todos os santos que nos abençoem, nos iluminem, nos orientem e nos protejam.