Coidado

Pode-se dizer que fui um menino normal. Passei a infância em peraltices diversas, algumas, é uma verdade, sutilmente escabrosas, mas nada que extrapolasse o aceitável, embora vez ou outra beliscasse, como qualquer outro da minha idade daquele tempo: trepando em árvores, fugindo para tomar banho de corgo, escapando para jogar bola em campinhos longe e até mesmo na roça, aleijando o próprio cabelo com tesoura cega, tentando fazer tatuagem com careta de caju, amarrando linha em perna de besouro, saltando de barranco, apertando a bolota do olho até chuviscar as vistas, dando e recebendo pedradas de estilingue e outras proezas do mesmo naipe. Sejamos compreensivos e lenientes, tudo, de um modo ou outro, nos conformes, equilibrado, mesmo que mal e mal, na balança geral das considerações.

Quando, enfim, atingi certa idade, ali pelos treze ou catorze, aquela fase em que a gente não sabe ao certo se é ainda criança ou se já é adulto, ou seja não tão imune a peraltices e tampouco credenciado à maturidade, mamãe passou a me dar um tanto bom de corda. Mas as folgas não aconteceriam de mão beijada não. Vincando a testa, o olhar penetrante por riba dos óculos, após assuntar meu pedido para sair, pensava um pouco, pedia maior esclarecimento e consentia. Entretanto, é a parte que me marcou de verdade, não vinha sem deixar de proferir, pausadamente, em alto e bom tom, no meio de outros termos uma palavrinha vigorosa, que me marcaria tão profundamente.

— Vai lá! Mas coidado, hem!

Que antes de tudo, antes de qualquer julgamento da grafia ou desconfianças mais, convém saberem todos que a palavra era falada assim mesmo, e é esse o diferencial como adiante será explicado, com o “o” regalado, suprimindo misteriosa e providencialmente o “u”. Sim. Decerto para não deixar brecha de confundir com a outra palavra.

Assim, no serpentear dos instantes de descobertas, não abria brecha para confusão, turbinando o sentido do léxico primário. Com efeito, “cuidado” soaria chocho, trivial, troço comum. Afinal, diz-se “cuidado” para qualquer coisa: “cuidado para não quebrar a xícara”, “cuidado para não entortar a ponta do parafuso”, “cuidado para não quebrar os ovos, “cuidado para não constipar...”

O “coidado” dito e repetido por mamãe ao longo dos anos de fronteira não era para coisas frívolas, de acordo com a razão dela. Ocorria sempre com peso e ênfase ao que carecia, carregando em si uma carga muito maior que uma simples advertência.

— Ir jogar bola em Ordália? Com quem?

No que eu lhe respondia:

― Pode! Mas coidado, hem!

Não tenho lembrança de ouvir de outra pessoa, dentre as milhares que conheci desde então até agora, pronunciar a palavra assim. Mamãe foi a única.

Com isso e por isso, ao me lembrar dela dizendo, parece ainda hoje reverberar vivo em cada instante de decidir algo, do mais simples ao mais complexo. Hoje sei que tratava-se de um magnânimo aviso ante o livre arbítrio e as consequências possíveis ao tomar essa ou aquela decisão.

Não, não é exagero que mil “cuidados” ditos aos berros em uníssono não corresponderiam, em sentido, a um “coidado” dito por mamãe. Ela sabia o que e por que dizia.

02/07/2022