ÔNIBUS PARA A EUROPA E PARA OS ESTADOS UNIDOS

Publicado no Livro do autor, de título "Hacasos", edição 2016

Centro de São Paulo, janeirão pra lá de quente. Passava das quatro horas da tarde, numa cidade abafada, abafada como é a vida nesta metrópole, como é o seu trânsito, como é a sua sofrida gente. Um calor insuportável de fazer inveja ao capeta. Há mais de meia hora, depois de uma reunião cansativa, estava eu postado à espera do ônibus para voltar ao escritório. Desconforto total. Em tempo, é sabido que esta urbe caótica pouco oferece em termos de transporte público.

Como já não bastasse o tamanho do calor, a fila indiana teimava em aumentar. Ao lado, na calçada invadida, camelôs bloqueavam a passagem e, numa gritaria desenfreada, ofereciam os mais variados produtos, cada qual com uma mensagem peculiar, - olha o abecê e a tabuada, é o abeceeê e a tabuada; - nova lei do inquilinato é a nova lei do inquilinato. Ainda, o bilheteiro em sua cadeira de rodas com o bordão - borboleta treze pra hoje, borboleta treze pra hoje, emendava uma sonora e quase incompreensível frase - vacagaloporco, vacagaloporco e ainda: vai dar veado, vai dar veado... Completado pelo hoje é seu dia de dia de sorte, como se os demais fossem de azar.

À minha frente um senhor calvo e barrigudo dentro de um terno azulão muito surrado e bem menor que o seu cadáver levava em uma das mãos uma maleta antiga, destas do tipo 007 castigada pelo tempo, enquanto que com a outra mão, digo, com o indicador desta, não parava de cutucar o nariz descontraidamente, levando o dedo até o cérebro, numa satisfação invejável, pouco se importando com a platéia. Atrás, uma simpática senhorinha toda elegante e tagarela não se cansava de falar da vida, dos filhos e dos netos, do marido que Deus levou e coisa e tal, sem parar de reclamar da demora do ônibus e do tempo perdido esperando este que vinha lá do bairro de Pinheiros, cortando todos os Jardins para finalmente chegar ao destino.

Eis que chega o Scânia e, tão logo encosta, nem deu tempo do motorista respirar, a senhorinha mais que depressa se dirigiu ao condutor e bracejando perguntou ironicamente se aquele ônibus vinha da Europa ou dos Estados Unidos. O homem distraidamente e sem se importar com os gestos dela respondeu laconicamente que sim, tanto na ida como na volta, o que deixou a anciã ainda mais alterada proferindo palavras agressivas:

- Onde já se viu desrespeitar uma senhora, fique sabendo que tenho idade para ser sua mãe, seu moleque malcriado - desferindo uma bolsada no pobre diabo.

Intervi falando para ela que o motorista apenas explicara o itinerário desta linha Que passa na ida e na volta pelos Jardins Europa e América e cruza a Rua Estada Unidos.

Samuel De Leonardo (Tute)
Enviado por Samuel De Leonardo (Tute) em 29/06/2022
Código do texto: T7548727
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