Monólogo

3h30 da madrugada. Preciso parar com esta mania de acordar e, involuntariamente, olhar que horas são. É preciso pôr fim a esse ato contínuo. Exercer um pouco de liberdade, sair do automático. Saber das horas antes mesmo de saber se estou vivo, eis uma emblemática contradição. Preciso viver antes de contar as horas e os boletos. Preciso, depois do banho, ficar feito um completo idiota, imóvel, esperando meu corpo secar. Sim, é preciso, mais do que nunca, ser o mais perfeito e feliz idiota. Fazer meu dever de casa bem-feito. Alegrar-se com as imperfeições das coisas; desconsiderar algumas normas, inclusive morais; contentar-se em não saber do que se trata as siglas FMI, GPS, EUA; acordar às 3h30 da madrugada, leve e saudável, despreocupado com o tempo e a inflação. É preciso, é necessário, viver a filosofia de Cabral, essa jovem de aproximados sessenta quilos, safra 1990, fã do Super Mário, que chega pra gente do nada e diz: "Estou meia triste hoje". E a gente não julga, apenas absorve. É preciso fazer como faz Cabral: andar na rua e imaginar o Super Mário pulando os postes, as placas, os quebra-molas. Depois, retornar para casa sem a ajuda do GPS ou do Google Maps, e não chamar mais as notas de cinquenta reais de cinquenta reais, e sim de onças. Quando alguém nos perguntar: "Tem aí cinquenta reais", responder: "Não. Tenho uma onça". É preciso voltar a nos alfabetizar, principalmente no âmbito das relações humanitárias. Abdiquemos de nossa ganância inata. Que fique terminantemente proibido morrer de fome, dormir com a cara virada para a parede ou de bruços, com uma lanterna do lado da cama, andar nu senão para fins recreativos, conferir se as portas estão fechadas, checar e-mail toda hora, acumular mais de um par de meias, roer unhas e adjacências. Que fique terminantemente permitido dar risada do nada, amar a primeira vista, embriagar-se depois de apenas uma cerveja de 250ml, ainda mais sendo latinha Antarctica blue, atender o telefone apenas depois do terceiro toque. É mais que preciso: é necessário.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 25/06/2022
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