Campo de aviação

Campo de aviação (José Carlos de Bom Sucesso – Academia Lavrense de Letras)

O domingo se iniciava com o amanhecer, um dos mais lindos, por volta do mês de agosto do ano de 1974. Pássaros cantavam animados nas diversas árvores e os galos cantavam as melodias em comemoração a mais um dia. O Senhor Andola, vulgarmente conhecido, morador do Bairro Palmeiras, já estava de pé. Coando e bebendo o café com leite e comendo broa de queijo feita pela esposa na noite anterior. De olho na janela da cozinha, que dava vistas para a igreja Matriz e toda a parte da cidade. O céu azul, muito claro, e os raios solares abrasavam aquela manhã, mais uma manhã do mês de agosto. Na próxima semana já era o mês de setembro, o mês das flores, o mês das festas e o aumento gradativo da temperatura.

Lentamente a esposa, por nome de Maria, aparece. Com a mão direita pega a xícara no armário, tratado por eles como guarda-louças. Com a mão esquerda, despeja o café sobre a xícara, o qual forma-se espumas até certa altura do vasilhame. O esposo lhe oferece o pedaço da broa. Sobre o fogão à lenha, o prato de louça, bem clarinho, onde se encontra o queijo fresquinho, que foi comprado no dia anterior. Mordia a broa e o pedaço de queijo e, aos poucos, ia bebendo aquele café retirado do bule na cor azul.

O marido, já havia terminado o café da manhã, sempre olhando em direção à janela, fitava o azul celeste. Alguns pássaros voavam lentamente e o beija-flor se aproximava para mais um dia de luta na coleta de pólen das lindas e vermelhas rosas plantadas por Dona Maria. Ele, vagarosamente, virando o corpo em direção à esposa disse:

- Querida! Já faz muito tempo que não pousa avião algum por aqui. Eles esqueceram da cidade. O último que pousou aqui foi no mês de maio. Veio trazer passageiro e nem mesmo desligou o motor. Estou sentindo falta de estar lá. Conversar com o piloto. Vigiar para que a criançada não ponha a mão em lugar nenhum da máquina.

- Sim, marido! É um bom tempo. Calma que algum dia virá e você poderá ir até lá.

- Hoje é domingo. Vou fazer o almoço mais cedo, pois teremos que ir à conferência, lá na Vila Vicentina. De lá, vamos passar um pouco à casa de minha mãe e voltaremos somente no final da tarde. Amanhã é a última semana da colheita do café. Teremos que sair cedo e terminar nossa tarefa na fazenda.

Com o diálogo acima, Dona Maria retira-se da cozinha indo para o quarto. Vestindo-se do avental, ela lentamente inicia a varredura da casa. Limpando móvel por móvel e se preparando para o almoço. O marido continua à janela e sempre olhando para o horizonte admirando a natureza e caçando algum avião que poderia surgir a qualquer momento como algumas palavras na mente de um escritor.

Enquanto isto, nas ruas do bairro, a criançada põe a brincar. Jogos de futebol, pique-boia, andanças de bicicletas. Pessoas saindo das casas, bem vestidas, indo à direção da igreja, pois o domingo se iniciava com missa, cantorias e o melhor almoço da semana, com macarronada, frango caipira, carne de porco, carne de panela, enfim, a mais pura harmonia para aquela época.

O Senhor Andola ainda insistia o olhar para o horizonte. Estava desapontado, pois somente alguns aviões a jato cruzavam o céu, mas estavam tão altos que nem mesmo viam a cidade. No fundo do pensamento dele, queria que algum avião pousasse no campo de aviação, que ficava bem próximo de sua casa. Era questão de dar alguns passos e adentrar no campo, ou seja, atravessar a rua de terra e estar lá.

Bem desapontado, foi até o quarto e vestiu o paletó feito por algum alfaiate. Precisava ficar bem vestido, pois, após o almoço, lá iam ele e a esposa à conferência. Já vestido, com o paletó e a calça social, calçado de sandálias, pois ele não gostava de calçar sapatos, pegou o chapéu e colocou na cabeça. Com a bengalinha na mão direita, ele despedia da esposa dizendo que sentaria debaixo da pequena árvore de beijo vermelha plantada bem próxima da casa. Lá esperaria pelo chamado da esposa para que os dois almoçassem e cumpririam a meta do domingo.

Como de costume, ele foi para o local. Lá, encontrou com dois amigos e sentaram-se no banquinho feito por ele. Conversavam, contavam casos e um deles se aventurou e foi buscar o violão. Cantavam e felizes estavam.

A manhã foi passando. As crianças brincavam por perto. Algumas galinhas do vizinho siam para a rua. Ciscavam, comiam gramas e capins, catavam formigas e os dois galos sempre por perto, pois as protegia de algum perigo.

Em determinado momento, um dos que estavam sentados no banco, disse:

- Já faz muito tempo que não pousa nenhuma aeronave aqui. Você, Andola, gosta muito de vigiar.

- É mesmo!

Respondeu ele com ares tristes. Cantaram mais duas músicas e de repente alguém disse:

- Escutem!

Uns dez segundos se passaram e aos poucos surge no horizonte, praticamente navegando na “perna do vento” (para quem não sabe, a perna do vento é “Parte do circuito de tráfego de aeródromo, sensivelmente paralela à pista de pouso, com rumo oposto à direção de pouso e anterior à perna-base”, um modelo Cessna 172, aeronave monomotor, de quatro lugares, nas cores vermelha e branca, cujo prefixo era PR-ATB,(em linguagem aérea universal significa Papa, Romeo, Alpha, Tango, Bravo), também conhecido por “teco-teco”, inclinando o bico para baixo, como está descendo de altitude. Curva-se à esquerda, em ângulo de inclinação aceita pelas normas de navegação aérea, rumando para a Serra de Ibituruna, mas conserta-se e vem direcionando sentido à igreja Matriz em voo rasante passando pela cidade, já em altitude bem baixa. Um pouco mais à frente, curva-se novamente à esquerda, já na metade da “perna do vento” e vai mergulhando aos poucos e já curvando novamente à esquerda, vai no sentido de aproximação final.

Andola ergue-se rapidamente e diz até logo aos companheiros. Dirige-se para a cabeceira da pista do campo de aviação até a aeronave se aproximar. O rosto dele brilha de alegria, pois, assim, poderá realizar o sonho de alguns meses. Recepcionar a aeronave, ajudar no balizamento e tomar conta para que as crianças ou alguns adultos curiosos coloquem as mãos onde não se pode colocá-las.

Enquanto isto, a criançada das vizinhanças já corre em direção ao campo, pois é algo novo, um avião está pousando na cidade. A pergunta que está na boca de todos é quem está chegando. Quais são as pessoas, se são políticos, se são pessoas ricalhaças financeiramente, fazendeiros, etc...

A cidade se movimenta. Alguns motoristas de taxis, o Senhor Luís Chofer, saindo premente com seu veículo “Vemaguet”, na cor cinza, descendo a avenida principal, mais conhecida como avenida do correio. Um pouco mais atrás, alguns veículos descem pela avenida e rumam para o campo de aviação.

“Neste domingo, eu, já de barriga cheia, pois já tinha almoçado, pego meu caderninho de anotações, a fiel caneta “Bic” azul, vestido de bermuda, camisa do Atlético Mineiro, calçado de chinelas havaianas, digo para minha mãe que estou indo ao campo de aviação, pois está chegando um avião. Saio correndo a tempo de ver o pouso da aeronave, pois vou ligeiramente e logo já estou na cabeceira da pista, junto ao fiel e amigo Andola.”

Em linha de aproximação, o avião já estava com a luz de pouso acesa. Era forte e muito forte, imagino que havia sido trocada na última manutenção. Aos poucos ia descendo e rapidamente tocava o solo. Ouvíamos o barulho do toque dos pneus (trem de pouso) no solo batido. Logo a nuvem de poeira era vista e se levantando a cada centímetro em que o avião percorria. Em alguns segundos, ele manara em meio à poeira. O som forte do barulho do motor e o vento causado pela hélice faziam com que a poeira, misturada com algumas pedrinhas de cascalho, fosse soprada para trás indo em direção de alguns desavisados, enchendo-os olhos.

O Senhor Andola fazia parte de balizador. Com a bengalinha, ele mostrava para o piloto onde ele poderia estacionar a aeronave. Estacionada, o motor era desligado. Quando não mais existia nenhum movimento da hélice, o piloto abria a porta e entrega ao Senhor Andola três calços para que ele pusesse nos pneus do trem de pouso, evitando que a aeronave se deslocasse.

Já tudo pronto, o primeiro passageiro descia. Era um senhor calvo, de aparência sessenta e poucos anos. O segundo seguia os mesmos passos do primeiro, mas a senhora loura, toda bem penteada, vestindo à moda francesa. Pouco atrás, o filho, com idade de vinte e poucos anos. Logo, o piloto, abrindo os braços como forma de espreguiçar, saia rapidamente indo diretamente ao pequeno compartimento de carga, pois duas pequenas malas eram retiradas dali. A criançada juntava mais perto para ver e ouvia os resmungos da passageira loura como forma de dizer que as crianças estavam atrapalhando seu andar. O Senhor Andola, imediatamente, inclinava a bengalinha e insistia para que a criançada saísse. Com dois cones à mão, o piloto dizia que ninguém poderia ultrapassar aqueles pontos, porque trazia risco de vida para quem ali estivesse e mais ainda para o próximo voo.

O Senhor Luiz Chofer se apresentava como o único taxista ali presente. Segurando as malas e abrindo as portas do veículo, os passageiros e o piloto se acomodavam. Ligeiramente, o taxi abria a grande fila dos curiosos e se punha a descer pela avenida e em pouco tempo já estava no hotel da Dona Nilza.

O Senhor Andola gritava com a criançada para não ultrapassar a marca. Falava muito e até ameaçava dar bengalada em quem atrevesse.

Eu, com meu caderninho nas mãos e rabiscando qualquer coisa, apreciava de longe. Assim que a criançada se acalmava e muitos indo para as casas, o guardião me chamava para aproximar da aeronave. Aproximava-me dela e dizia o pouco que sabia. Mostrava-lhe os mecanismos externos, tais como as asas, as rodas do trem de pouco e a posição da hélice. Eu mesmo dizia para o Senhor Andola que seria um piloto de avião. Ele sorria e dizia que estaria ali, no campo, para vigiar a aeronave quando eu estivesse pilotando.

O veículo do Senhor Luiz Chofer retorna mais tarde. Era o piloto que se deslocava e tinha outra viagem, não sei para onde ia, mas aos poucos se aproximava. Lembro-me de quando eu explicava para o Senhor Andola sobre o funcionamento, apareceu um senhor de estatura alta. Usava chapéu preto, terno azul-marinho e sapatos pretos. Pôs suas duas mãos sobre meu ombro e me perguntou se o avião tinha volante. Imediatamente, eu lhe disse que no ar os controles eram feitos pelo manche e por pedais. Levei-lhe para a parte de trás da aeronave e lhe mostrei o leme, as asas traseiras e lhe expliquei como era o procedimento. (Referi-me como asas traseiras naquela época, mas a nomenclatura designa como profundores horizontal e vertical. Porém, outros termos técnicos aprendi quando me formei no curso de piloto privado, mas não exerci a carreira). O piloto foi se aproximando e serenamente ouvia minhas explicações. De vez em quando usava os termos técnicos para dizer. Então, abrindo a porta esquerda do avião, chamou-me e insistiu para que eu entrasse lá. Em aula rápida, mostrou-me os indicadores e falando nominalmente o funcionamento deles. Aconselhou-me a fazer o curso quando completasse os dezoito anos e me aperfeiçoar.

Feliz de ter entrado em um avião pela primeira vez, sai radiante de alegria.

Aos poucos, o Senhor Andola insistia para que as pessoas saíssem, pois a aeronave ia decolar. Antes do motor ser ligado, o piloto, por nome de André, chamou-lhe rapidamente e ofereceu-lhe duas notas como forma de gorjeta ou pagamento pelos serviços de guarda do avião.

O motor foi ligado e o barulho ensurdecedor era ouvido pelos que ali estavam. Mais poeira ia surgindo, até que o avião entra na posição de voo. Luzes de navegação eram acesas. O ronco do motor falava mais e a poeira levantando fazia com que muitos procurassem abrigo em outro lugar. Duas cortinas se abriam de poeira e no meio dela via-se a aeronave iniciar a corrida até chegar a seus cinquenta e cinco nós, cerca de cento e dois quilômetros por hora e deixando a poeira para trás. Lá embaixo, erguia-se rumo ao horizonte. Curvava-se pela direita e ganhava o rumo de Belo Horizonte - MG, ou seja, em linguagem aérea, proa de Igarapé – MG, para ingressar nos corredores aéreos e quem sabe pousar no aeroporto da Pampulha, Carlos Prates ou outro apto a recebê-lo.

Então o domingo entrava na tarde. Os que ali estavam voltavam para as casas comentando o pouso e a decolagem do avião.

Lembro-me de ter chegado perto de mim um garoto e falou-me que quando o avião iniciou o processo de decolagem do solo, ou seja, quando tirou o nariz do solo, ele viu que a calda bateu no chão e saíram algumas faíscas de fogo. Era normal, pois o campo de aviação tinha um grande declive. Se fosse hoje, pelas normas e regras de aviação, ele não seria homologado pela ANAC.

Enquanto o avião sumia no céu, algumas pessoas permaneciam por ali, sempre comentando algo a respeito de outro pouso, a qualquer dia, a qualquer hora.

JOSÉ CARLOS DE BOM SUCESSO
Enviado por JOSÉ CARLOS DE BOM SUCESSO em 25/06/2022
Código do texto: T7545515
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