Deus existe?
Chovia a cântaros. O pé-d'água caia havia uns vinte minutos. Os ventos, que até minutos antes deixava a todos suspensos, agora iam ziguezagueando por entre prédios e casas, e árvores, e contornando veículos, a desmanchar o penteado de quem possuía uma boa porção de cabelos, e a espalhar pelas ruas e avenidas e calçadas folhas e galhos minutos antes arrancados à força das árvores. O movimento de veículos, e de ciclistas e pedestres ia retomando seu ritmo normal, caótico e organizado, à medida que a chuva arrefecia-se.
À rodoviária chegaram, quase que ao mesmo tempo, João, José e Pedro, que saudaram-se com os costumeiros apertos de mãos e tapas nas costas e abraços, João, do escritório de contabilidade, José, da loja de calçados, Pedro, da escola. Sabiam eles que teriam de esperar, durante uns trinta minutos, o ônibus chegar para nele embarcarem, ou, brincava Pedro, nele onibuzarem. Tão logo saudaram-se, teceram observações acerca da chuva, que persistia, intermitente, a cair havia oito dias. Falaram poucas palavras acerca cada qual do trabalho que executaram durante o dia. E assim que José falou de sua ida, domingo, à igreja, às onze horas, antes de se dirigir à casa de seus pais, João lhe perguntou:
- José, você acredita em Deus, certo?
- Sim. Acredito.
- Mas você - insistiu João - tem provas da existência de Deus?
- Eu tenho fé, João. A existência da vida é prova da existência de um criador, Deus.
- José, não me leve a mal, não quero ser desrepeitoso. Eu não acredito que a existência da vida seja prova da existência de um criador, um deus; talvez seja a existência da vida prova da existência de fenômenos cósmicos, que a criaram.
- E o que, João, produziu os fenômenos cósmicos? Uma entidade cósmica? E pode-se atribuir a tal entidade a criação dos fenômenos cósmicos, que são a causa da criação do mundo. E que nome lhe podemos dar?
- Eu não entendo a idéia, que os que crêem na existência de Deus defendem, que ensina que existe um ser, assim, como eu direi? vivo, um ser vivo, que criou a vida, a partir do nada,por sua vontade. Qual material tal ser usou para fazer real a sua invenção, o seu projeto, se nada havia?! Se nada havia... Ora, o que nasce do nada? Nada. O ser criador, Deus, assim os nomeia os que acreditam que Ele existe, inventou a vida, primeiro em pensamento, e para Ele a vida era, no início,apenas uma idéia... Ora, o que havia, então? Materiais inertes, sem vida: minerais. E aos materiais, que Ele tinha à disposição, Ele deu vida, animou-os com seu sopro divino. Mas, antes, Ele criou os minerais... Criou-os a partir do quê, se nada existia?! Não entendo... Quem criou os minerais? O mesmo ser, a mesma entidade cósmica, que criou a vida? E por que Ele criaria a vida? E por que criou os minerais? Qual razão para se criar o universo Ele teria? Qual propósito? Se Ele criou a vida, por que não a fez perfeita? O que eu quero dizer com vida perfeita não sei. Não estou me referindo à minha vida, à sua vida, José, à sua vida, Pedro, à nossa vida, à vida dos humanos, à vida dos animais, à vida das plantas; estou me referindo à Vida, vida com "v" maiúsculo... Você está me entendendo, José? Não sei o que penso. Eu me pergunto por que para haver a vida há a morte e por que para se conservarem vivos os seres vivos têm de se matarem uns aos outros. Animais matam plantas, plantas matam animais, animais matam animais, plantas matam plantas. Leões matam zebras, humanos matam bois. Sem se matarem não vivem os seres vivos. Se Deus tem poder para criar, do nada, que existia, um universo, por que não fez a vida com outros ingredientes? O nada existe?! Antes de Deus criar o universo, nada existia. Então... Ora, então o nada existia. E o que era o nada?! Eu penso, e penso, e penso, nestas e em outras questões, e a minha cabeça esquenta-se de tanto pensar, e eu não respondo às perguntas, que são muitas, infinitas, que me faço, e concluo que não há um sentido sequer em se acreditar que Deus existe, e, assim, não encontrando sentido na idéia que ensina que Deus existe, acredito que Ele não existe. Confuso, não?! Muito confuso. Mas não pense você, José, que eu sou um anti-Deus, um descrente fanático, um ateu fundamentalista, destes que querem, e querem com toda a força do mundo, matar Deus e os que n'Ele crêem. Nada disso. Eu apenas não entendo. Se eu sou um ateu?! Acredito que ateu eu seja. A ausência de explicações, que sejam irrefutáveis, para as questões que me proponho, incomoda-me, perturba-me, tira-me o sono algumas noites, e em outras noites, eu vindo a dormir, dá-me pesadelos. Ora, por que Deus não se dá a conhecer a todo mundo, de corpo e alma, para encerrar a discussão?
- Se Deus aparecer para todos, e declarar-se Deus, quem irá acreditar que Ele é Deus? - perguntou, sorrindo, Pedro, que até aquele momento se conservara à margem da conversa entre os seus dois amigos.
- Sem zombarias, Pedro - alertou-o José.
- Não estou com zombarias, José. João, você disse que se incomoda com a existência de explicações para as questões que você se faz. Que bom. Está aí a maravilha da nossa existência.
- Estais zombando de mim e do José, né, ô, Diôgenes?!
- Não. Não. Não estou, não.
- Não, Pedro?! A maravilha da nossa existência é a ausência da existência de uma resposta, a resposta correta, que explique a nossa existência?
- Exatamente, João. É bem por aí. Eu digo, e quero dizer, que se Deus descer ao mundo dos homens e a todos dizer que é Deus, lhe pedirão os homens que Ele prove que é Ele Deus, e Lhe exigirão que Ele crie coisas, assim, num estalar de dedos, e do nada fazer, por exemplo, um passarinho. E Ele atendendo ao pedido, melhor, exigência, dá vida, a partir do nada, a um passarinho, que pode ser um pardal, ou um beija-flor, ou outro passarinho qualquer. E acreditarão os homens no que os olhos deles viram, ou irão eles se infligir suspeitas enervantes e alegar que o fenômeno que testemunharam foi uma obra de prestidigitação, a de um mágico, a de um ilusionista, e sairão a procurar por uma explicação, a que, sem saberem qual é, seja a correta, e assim que a obtiverem dirão que ela não explica o fenômeno que testemunharam.
- Afinal, Pedro, você acredita que Deus existe, ou não?
- Para dizer a verdade, João, a verdade verdadeira, eu não acredito, e nem deixo de acreditar, que Deus existe. Não sei se Deus existe, ou se Ele não existe. Não acredito na existência de Deus, e não acredito que Ele não existe. Se Ele existe eu não sei; e eu não sei se Ele não existe.
- Que confusão dos diabos, Pedro.
- Confusão infernal, José. E eu não tenho a pretensão de com as minhas palavras confundir ninguém além de mim mesmo. 'ta'í a beleza da nossa existência. Confundimo-nos com tal questão; infelizmente, há quem acredite que tem autoridade para impor suas crenças a todos os seres pensantes, sejam suas crenças quais forem, ou a que ensina que Deus existe, ou a que ensina que Deus não existe, ou outras quaisquer, que são infinitas, presumo, que a imaginação dos homens é capaz de conceber.
- Você não perde oportunidade, Pedro, de triturar o cérebro de quem se dispõe a ouvir o que você diz. Deus me livre. Em vez de me ajudar a pensar, você me confunde ainda mais.
- Eu não sei o que penso, João. E deixo a questão que você pôs em aberto. Quem sou eu para iluminar seja o que for! Não sou lâmpada, nem lanterna. Eu mal sei o que pensar a respeito da existência de Deus, ou de Sua não-existência, e você quer que eu ajude você a pensar?! Você ficou doido?! Eu penso o seguinte: acompanhem-me vocês dois: não sei se me farei entender por vocês, mas vamos lá: quem diz "Eu acredito que Deus existe." não prova, ao dizer tal frase, que Deus existe; apenas afirma que Ele existe; e afirmar que Deus existe não é o mesmo que provar que Ele existe. Pode uma pessoa que acredita que Deus existe provar, por A mais B, usando de um raciocínio lógico irretocável, que Deus existe; penso, todavia, que a conclusão, a de que Deus existe, do raciocínio que ela desenvolveu já se encontra no seu princípio, porque, consciente ou inconscientemente, ela, sendo crente em Deus, quer acreditar que Deus existe, e é o pontapé inicial do seu raciocínio uma premissa que a permite chegar à conclusão do seu agrado; e por mais sofisticado que seja o instrumento lógico que emprega ao pensar, ela não foge do comum estado de espírito humano, o de provar ser o certo o que ela quer que seja o certo. Todos somos assim, pois todos os seres humanos somos seres humanos. Embutido na premissa está a conclusão do raciocínio. Ou eu direi melhor se disser que a conclusão do raciocínio antecede a premissa, à premissa se antecipa, porque se quer chegar à conclusão que se deseja? Não sei. Sei, unicamente, que todo pensamento em cuja conclusão está a comprovação da existência de Deus é um exercício de fé, de crença, e mais de crença, de fé, do que de lógica, de um raciocínio impecável, este raciocínio lógico a ludibriar a pessoa que o usa, persuadindo-a que ela provou algo, algo, este, que, na verdade, não está provado, mas está em hipótese, é uma conjectura. O mesmo raciocínio eu uso para falar daquelas pessoas que juram de pé junto que Deus não existe, pessoas que, em última análise, acreditam na não-existência de Deus. Sem tirar nem pôr, os que acreditam na existência de Deus e os que acreditam na não-existência de Deus acreditam no que acreditam e não provam, os primeiros, que Deus existe, os segundos, que Deus não existe. Eu nunca vi uma pessoa que afirma, e afirma categoricamente, que Deus não existe provar que Deus não existe; mas já vi muitos ateus ter idéias preconcebidas acerca da crença na existência de Deus, e muitos, preconceituosos, a arvorarem-se intelectos superiores porque não se misturam, não se confundem, com os crentes na existência de Deus, que, pensam muitos ateus, são gente supersticiosa, de uma era bárbara, anterior à civilização, pré-científica, gente que ainda não abandonou culturas arcaicas, milenares, antiquadas, de gente quadrada. E provam que Deus não existe? Não. Revelam-se crentes, gente que crê na não-existência de Deus. São crédulos. Os que crêem em Deus não pedem por uma prova científica da existência de Deus, pois acreditam, e acredito que corretamente, que a crença na existência de Deus não é um artigo científico,e contentam-se com a, digo, e digo respeitosamente, ignorância acerca da existência de Deus, ignorância, saliento este ponto, científica. Eu nunca vi um crente em Deus viver atormentado com a inexistência de explicação científica para a existência de Deus. Eles intuem, eles, os crentes na existência de Deus, intuem que há mistérios que os humanos nunca desvendaremos, que há segredos que jamais aos humanos serão revelados, e não se atormentam com tal desconhecimento. E os que acreditam na não-existência de Deus, assim me parece, também não procuram por uma explicação científica, uma explicação científica que prove a inexistência de Deus, prova, esta, que, sabem, ou intuem, jamais encontrarão, e nunca a encontrarão porque, talvez, talvez, presumam que ela não exista. Ou, melhor, presumem, ou acreditam, as pessoas que acreditam na existência de Deus e as que acreditam na não-existência de Deus que as provas da existência de Deus existem, e as há em abundância, mas sendo falha a inteligência humana, jamais os humanos as apreenderemos, mas preferem declarar, com certa dosagem de intolerância, os primeiros, que Deus existe, sem dar as provas da existência d'Ele, os segundos, que Deus não existe. Ou, então, as pessoas que acreditam na existência de Deus e as pessoas que acreditam na não-existência de Deus sabem, ou presumem, que há provas, e infinitas, da não-existência de Deus, e...
- Resumo da ópera: cada cabeça, uma sentença.
- Exatamente, José. Eu me inclino ao ateismo. Não acredito que Deus existe; ao dizer que não acredito que Deus existe não estou a negar a existência de Deus, pois ao dizer "Não acredito que Deus existe.", eu apenas afirmo a minha crença. E o Pedro, que não vai nem pra lá, nem pra cá, não acredita que Deus existe, e nem que Deus não existe.
- Eu deixo a questão em aberto. Ouço com atenção, e respeitosamente, quem crê que Deus existe e quem não crê que Ele existe, ou, melhor, quem crê que Ele não existe, e não entro em brigas com ninguém por causa disso. Cada um com a sua crença. Que se respeitem as pessoas. O José acredita em Deus; o João, não; eu deixo a questão em aberto.
- Somos os três amigos há quanto tempo? Eu e o João, há uns quinze anos; eu e o Pedro, há uns doze anos...
- E eu e o João há uns doze, doze, quinze anos.
- E nos entendemos maravilhosamente bem.
- Não maravilhosamente bem, não é verdade, José?! Temos as nossas rusgas.
- E rugas, que se multiplicam exponencialmente, João, na sua cara.
- Você já se olhou no espelho, Pedro?
- Não briguem, crianças. Pedro, desculpe-se com João; e João, descul...
- Vá te catar, José.
- Vá ver se estou na esquina.
- Perdeu a noção do perigo, bróder!?