A menina que amava o rádio
A coluna do Leão lembra hoje um fato que acaba correlato a outra ocorrência, ambos os eventos históricos na vida de uma menina que eu conheci aos doze anos na Rádio Comunitária Araçá de Mari. Essa emissora popular, criada por nosso grupo de protagonistas da luta social e cultural da comunidade, foi fundada em 1998. A rádio enfrentou muitas querelas com o Poder. Fomos fechados, interditados, tivemos nossos equipamentos sequestrados pela Agência Nacional de Telecomunicações e até a Câmara de Vereadores local votou um projeto proibindo que os comerciantes apoiassem a pequena estação de rádio da qual eles não tinham controle. E, claro, a rádio encantou muita gente do lugar, como se fosse a própria voz da cidade, o cidadão se reconhecendo orgulhosamente através das ondas do rádio popular. Estou lançado um folheto, “História da Rádio Araçá em versos”, onde metrifico assim:
Diziam que a rádio era
Clandestina e ilegal
E não tinha do prefeito
O apoio oficial
Falaciosa visão
De vereador boçal
Resistir, denunciar
Mostrar toda a verdade
E mobilizar o povo
Impulsionando a cidade
Foi a nossa atitude
Diante dessa maldade
Demonstrar que o projeto
Era viável e honesto
Colher abaixo-assinado
E outras formas de protesto
Assim nos movimentamos
Contra esse ato indigesto
No calor da luta, apareceu Andreia Santos, garotinha pré-adolescente se colocando em posição de combate para zelar e defender aquela obra social tão atraente. Aprendeu a dominar o microfone e logo teria seu próprio programa destinado aos ouvintes de sua idade. A rádio foi seu aprendizado maior na transição entre a infância e a idade adulta. Cresceu como cidadã consciente. A rádio Araçá teve o mérito de estimular seus talentos de comunicante e ser humano militante na grande causa de reduzir os abismos das desigualdades sociais.
Andreia Santos se declara resultado das oportunidades dadas pelos governos do Partido dos Trabalhadores. “Sou fruto do Bolsa Família, da assistência estudantil/social, fui criada no meio da inflamação dos movimentos sociais, na Igreja, na rádio comunitária e no movimento estudantil. Com todo meu esforço e dedicação, sem essas oportunidades eu não teria sido a primeira da minha família a ingressar numa universidade pública, fazer intercâmbio na Europa e ser bolsista da CAPES em uma das melhores universidades deste país, a Universidade Federal de Pelotas”. Ela foi a Natal entregar ao ex-Presidente Lula alguns de seus diplomas, “simbolizando meu agradecimento e reconhecimento pelas chances dadas a milhares de jovens como eu”.
Vi sua foto abraçando Lula e entregando seus certificados e lembrei-me da menininha do rádio, prestando atenção em tudo, sempre fazendo perguntas e questionando os conceitos. Nas suas redes sociais, Andreia Santos garante que “zerou a vida” ao conhecer pessoalmente o velho guerreiro Luiz Ignácio. Fui pesquisar, descobri que “zerar a vida” é uma gíria contemporânea cada vez mais comum dentro da cultura pop e das redes sociais em geral. A expressão consiste basicamente em conhecer alguém ou um lugar que você talvez julgasse impossível, algo que te marcará pra sempre. Talvez ela tenha “zerado a vida” nas parcerias que fez com sua rádio Araçá aos doze anos de idade, estabelecendo-se como cidadã consciente e determinada, em todos os contextos de poder. A luta se faz com essas dinâmicas forças jovens, dispostas a encarar o desafio de multiplicar as vozes da sociedade.