As portas automáticas de shopping trazem uma sensação de poderio a quem as utiliza, não é? Como se força do pensamento fosse suficiente para escancará-las. Quando criança cria que era feito "abra-te-sésamo". O tesouro estava escondido do lado de lá. E no fundo estava. É por essas e outras fantasias trazidas dos livros que vi e li que transporto meus sentimentos adormecidos para a realidade.

 

Em total discrepância com essa sensação de super poder, como uma heroína das galáxias, diante da antiga casa dos meus avós paternos, encontro-me com a solidão captada num olhar: quando cerra a porta...

 

Quando a última batida se ouve, quando a chave dá a sua última volta, parece que a descendência se trinca feito vidro encapado: você vê as partes, mas não estão mais unidas como antes. São fraturas expostas em linhas tão delicadas, por vezes, imperceptíveis a olho nu mas, microscopicamente projetadas pelo coração quando dos encontros dos descendentes e seus ramos.

 

Sabe aquele café embalado a vácuo, traduziria a emoção de olhar para a porta que nunca mais se abriu. É tão apertado que dependendo da forma como a despreendemos (a emoção) é possível entornar o conteúdo (marejar os olhos).

 

Perdi meus avós antes de seus cabelos ficarem brancos. Meu avô paterno foi-se ainda mais cedo, antes de vir ao mundo. Aquela sensação de abrigo afetivo, de colo aquecido, de doce em calda e de picolé no palito ficou na lembrança. As fotografias dão um certo consolo: as imagens falam mais que qualquer palavra. Meu avô era um fantasma que feito Gasparzinho era uma cra do bem. Os meus primos que o conheceram falavam dele com tanta propriedade. Vejo-o em mim, quando sou forte, mas aos trapos. Ele sorria com a ponta dos dedos, já que o seu rosto abatido pela doença, o impedia de ser feliz por inteiro. Quanta saudade daquilo que nunca vivemos. É, uma saudade do que podia ter sido.

 

Mas, por aquela porta de entrada, passei centenas de vezes. Para pedir a benção, rezar orações conjuntas, almoçar em natais e semanas santas. Para chamar a vovó em dias de supermercado: meu pai era o filho que a levava para fazer compras. Era o dia da felicidade urgente: haveria balas, doces e refrigerante. Nos outros dias também tinha essa doceria, mas não tinha vovó e suas histórias.

 

Vovó era uma figura singular. Cabelos longos abaixo da cintura de cor preta azulada, embutidos numa trança, corpo forte, estatura baixa, olhar ressabiado, sempre de vestido com dois bolsos, onde escondia a nossa alegria. Aqueles sacos tinham os pirulitos mais saborosos, as balas mais doces, o presente de aniversário em espécie (dinheiro) que virava boneca.

 

Da varanda, com os cotovelos assentados na pilastra, ouvia-se sua voz rouca a chamar:

 

- Corre aqui. A vó tem surpresa... E com o dedo na boca pedia silêncio, como se alguém nos escutasse, mas éramos ela e eu.

 

Ao passar por aquela porta, encontrei o melhor frango frito; a melhor gororoba da Paixão, o melhor doce de cidra e figo... Foi lá que chorei ganhando presentes de Natal, brinquei com os meus primos (que eram muitos) e vi minha vó indo embora pela última vez, numa ambulância. Depois da missa, ela fez um café e ao colocar a garrafa na mesa, sempre servindo, como era de praxe, o coração parou de bater.

 

Aquela porta se abriu pela última vez e o chão também o fez. A casa estava cheia, muita dor e choro, quando a tampa da urna foi cerrada e a carreata fúnebre virou a esquina (minha tia dizia que não podia ver o enterro encerrar pra não ser o próximo da fila) meu pai fechou a porta, entramos no carro e eu acenei com a mão, como quem desse adeus.

 

Olhando do fundo do carro pelo vidro traseiro, vi D. Rosa com um terço nas mãos, sumindo no espaço. Até hoje não sei se era verdade ou fantasia a frase que ouvi no íntimo: fica com Deus.

 

A porta fechou e vez ou outra a nostalgia a abre. Vejo tudo igual, afinal, os que amamos jamais morrerão porque vivem em nós... A cristaleira antiga, o sofá cama, as cômodas com as blusas passadas e engomadas, e os vestidos costurados por minha mãe e suas filhas, irmãs de meu pai, que eram bordadeiras de mão cheia.

 

Ah, vozinha. Que saudade tenho da porta. Nem mesmo a magia do shopping é capaz de apagar a sensação inexplicável de lembrar dela escancarada, dia e noite, a qualquer tempo, em qualquer dia... Pra toda situação.

 

Do lado de fora, em frente à casa, vejo aranhas no marco da porta e uma poeira sem fim...

 

O que seria de mim se não fosse feita de memórias?

 

Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 22/06/2022
Reeditado em 22/06/2022
Código do texto: T7543333
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